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domingo, 25 de setembro de 2011

Monólogo

            Afundei-me na poltrona da sala defronte a janela que dava para o jardim dos fundos. Peguei o cachimbo que descansava na mesinha ao meu lado e apanhei os fósforos no bolso do meu casaco. Acendi o cachimbo e dei uma grande tragada enquanto me recostava e a poltrona me abraçava aconchegante. Soprei a fumaça prazerosamente e desfrutei dos segundos preguiçosos daquele fim de tarde.
            Lá fora, o jardim de cores fortes e vivas enegrecera com as pesadas nuvens que pairavam no céu, traguei outra vez, mais devagar, e ouvi no telhado um barulhinho simultâneo com o soprar da fumaça para a sala escura. Gotinhas solitárias batiam na telha anunciando o fim da estiagem. Poucos segundos se passaram até as poucas gotinhas aumentarem, balançando as flores e folhas do jardim, até formarem um som contínuo, impossível de decifrarmos a individualidade. Senti a poltrona mais confortável e o cachimbo mais prazeroso. Como eu adorava aquilo.
            Era conhecido por muitas pessoas por meus gostos estranhos e inexplicáveis, e não tenho motivos para descordar, sinto-me lisonjeado por apreciar o que os outros desmereciam. A chuva sempre me fascinou tremendamente. Uma dádiva dos céus. Como as pessoas poderiam não gostar da dádiva de encharcarem-se com a vida caída do céu? Eu poderia passar horas a apreciar as gotas caírem sem pressa, sem destino, sem permissão, esparramando nas superfícies, abraçando a todos. Os minutos correram calmos e silenciosos enquanto me afundava em júbilo que umedeceu-me os olhos.
            Agora tudo a minha volta me reconfortava e me felicitava por existir, traguei mais uma vez e deixei a fumaça vazar para fora de mim tão lenta que parecia solidificar-se enquanto dançava em pleno ar. Meus olhos mudaram de foco, deixei de apreciar a chuva cair no jardim e as gotas correrem na janela e passei a prestar atenção na fumaça. Esta tomou toda a sala, correndo pelos móveis e pelas paredes, do teto ao chão, a fumaça tomava todos os cantos. Estupefato, tentei entender o que havia acontecido. “Meu Deus!” exclamei, a casa deveria estar pegando fogo. Mas foi antes do meu corpo reagir ao perigo que a fumaça começou a mover-se com mais velocidade, circulando a minha volta e condensando. Rodopiou, rodopiou e foi-se unindo, comprimindo até uma bola branca pairando no ar na minha frente. A esfera alva ficou subindo e descendo lentamente no ar até que começou a tremer e num átimo tomou forma de homem.
            Encarei incrédulo o homem, emanava uma luz difusa e era inconsistente assim como a fumaça que lhe deu vida. Ele não tocava o chão, flutuava à sua própria órbita. Levei breves segundos para me concentrar no que me defrontava e mirei-me o olhar em seu rosto. Um gélido arrepio me correu a espinha quando nossos olhos se encontraram. O homem me encarava, mas estava tristonho, envolto em sua amargura. Senti-me sair do corpo quando associei o rosto do homem a uma lembrança muito familiar, pensei estar diante do meu pai, que morrera quando eu ainda era pequeno. Mas o homem possuía alguns traços peculiares que proporcionavam a distinção. O homem aparentava ter ao menos uns dez anos a mais que meu pai quando morrera, e não imaginei ser possível a alma de uma pessoa envelhecer após a morte. Além disso, meu pai era grisalho, e o homem tinha uma cabeleira preta que poderia ser reluzente como a minha se fossem fios de cabelo reais que a compusesse.
-        Muito me agrada o cair da chuva. – disse o homem me olhando nos olhos mas sem perder a tristeza evidente - Assim como tens os olhos umedecidos pela alegria do momento, muitos podem tornar-se melancólicos com a alegria que sentem, muitos podem sofrer por estarem felizes.
            “Mas minha melancolia nada tem a ver com a felicidade pela chuva. Minha melancolia é compartilhada por muitos que sentem uma dor universal, que atrevo dizer sortudos os que não a sentiram. Sofro pela dor de amar.”
            Permaneci ali, impossibilitado de livrar-me do abraço outrora confortante da poltrona e fugir dali, fugir do homem que eu não sabia estar enxergando na minha mente ou na minha sala. “Ainda pequeno fui mandado por minha família para um seminário. Segui veemente meu destino planejado por terceiros e não tinha problemas com isso. Mas minha mente talvez tenha sido minha maior dádiva e minha pior maldição. Não enxergava a fé, esta me escapava nos dedos assim como a matéria com a qual sou feito agora. Não me sentia correto continuar meu destino se não fosse de corpo e alma, então deixei o seminário e encarei os infinitos caminhos que temos na vida, agora sem ter alguém para indicar qual seguir.”
            “Arrumei um emprego como ajudante de escrivão e encontrei um lugar para morar. Tudo era novo e emocionante e por mais que praguejassem, a chuva que caía sempre me trazia a renovação da vida pelos céus, lavando as minhas incertezas e limpando a minha mente. Estava muito feliz e então a encontrei, Cecília.”
            Os olhos do homem lampejaram uma forte emoção por um segundo, até voltarem a transmitir dor e pesar.
-        Apaixonamo-nos instantaneamente, pela primeira vez eu me sentia completo, como se o destino atuasse como deveria ser, sem predição, sem arreios. Éramos tão compatíveis, estávamos em sintonia sempre, e nada importava ao nosso redor se estivéssemos juntos, completos.
            “Não levou muito tempo para vivermos juntos, era como se fosse algo completamente natural, não havia nada de incomum se ocorria entre nós. Agíamos como se estivéssemos esperando pelo o nosso encontro desde que nascemos, e o destinho traçado para nós fora maior que os destinos que pensaram ter escolhido vivermos.”
            A expressão de tristeza do homem evoluiu para pura dor e pesar. A amargura era tamanha que tornava-se quase mais apalpável que o próprio homem, me contraí involuntariamente protegendo-me da dor que pareceu ser minha. Apesar disso tudo, o rosto do homem tornava-se cada vez mais familiar, era quase possível emoldurar em volta do homem e dizer ser um retrato de algum parente meu, imaginei a moldura do espelho do meu quarto rodeando o homem a me refletir um reflexo flutuante.
-        Eu amava Cecília de todo o coração, e ela retribuía esse amor talvez até mais. As coisas não poderiam estar melhor até que a minha maldição mais uma vez surgiu para balançar o meu destino, mas desta vez bem mais forte, assim como as gotas da chuva balançam com fúria as flores do jardim atrás de mim.
            Eu já não prestava mais atenção na chuva, nem em nada ao meu redor, já perdera até a curiosidade em descobrir de quem seria aquela visão que me surgira, a única coisa que me importava era a história que o homem suspirava depressivamente.
-        Minha mente! Sim! - o homem transparecia fúria agora – Esta maldição não me pode aliviar, sempre em busca da minha ruína. Pois esta devia deliciar-se mostrando a razão sobrepujar a emoção com tamanha tirania e persistência.
            “Cecília fora noiva antes de me encontrar. Aquilo não me incomodara de início, mas o tempo é uma constante que pode nos salvar ou nos arruinar, e ele escolhera a razão para atuar em mim e definhar-me aos poucos.”
            “Passei a questionar-me se Cecília ainda guardava algum apreço por seu antigo companheiro, se ainda pensava nele quando a noite caía, quando as lembranças dominam a mente. Minha curiosidade por seu passado foi o maior erro que pude cometer. Penso agora que poderia ser diferente se a ignorância tomasse a minha mente e o amor triunfasse.”
            “Cecília não ligava para o passado, só nós dois que importava. Mas aos poucos os detalhes do seu passado me entristeciam, me indignavam. Oh, como a mente pode ser uma ferramenta tão cruel, a mesma mente que podia definir leis do universo e compor belíssimas obras, também poderia corroer a alma de um homem e matá-lo.”
            “Saber que outro homem possuíra o calor de Cecília me repugnava. Mas não me repugnava ela, me repugnava saber que o homem ainda podia existir em algum lugar. Como poderia viver depois de tudo que fizera? Cecília passou a sofrer com as minhas ideias, ela me amava e sentia-se incapaz de mudar o seu passado para agradar o meu grande e doentio ego.”
            “Eu tinha os meus momentos de claridade, via que estava agindo como um tolo, deveria viver o presente com a mulher que amo, o passado ficara para trás, onde não poderia mudar. Erro meu, o passado não pode mudar a si mesmo, mas é um grande fator de mudança do presente. Cecília não sabia mais o que fazer para nos salvar, ela me amava muito e eu a ela, mas a minha mente estava tomando o controle, pois tentava resolver meus dilemas racionalmente, um erro que os homens costumam cometer quando deveriam resolver tais problemas do coração com a emoção.”
            Boquiaberto, deixei o cachimbo cair no meu colo enquanto devorava a história do homem sem perder nenhum detalhe, como se a sua dor fosse minha. O rosto do homem começou a abrandar e acalmar-se até voltar à eventual tristeza e amargura.
-        Desta vez a minha mente não corrompia apenas o meu destino, mas tornava a vida de Cecília muito infeliz, porque ela sofria os meus sofrimentos. Tornei-me psicótico com o seu passado e deixei de viver o nosso futuro. Até o ponto que não pude voltar. Eu fugi de Cecília para um lugar em que ela não poderia me procurar, em que estaria tão longe que não lhe causaria mais sofrimentos. Eu nunca mais a vi... espero que tenha dado certo...
            A voz do homem começara a distanciar-se embora permanecesse na minha frente, seu olhar correu pela sala e por fim encontrou o meu. Vi seus lábios se moverem em algo que poderia ser um “Eu te amo, Cecília.” Mas seu corpo começava a perder consistência e tornar-se nuvem novamente. O homem foi-se dissolvendo até sumir em si mesmo.
            O som da chuva voltou à minha mente como se estivesse mudo antes e levantei-me num susto abrupto. Sentia a amargura que o homem sentira. Chorei em pesar com seu sofrimento e vi, agora certo de que era na minha mente, o rosto do homem rejuvenescer e mostrar a familiaridade com que tanto me intriguei.
            Sentei-me novamente na poltrona e voltei a encarar a chuva, que agora caía serena. Foquei meus olhos nas nuvens negras no céu que me lembravam vagamente meu visitante inusitado. Sorri para as nuvens e disse para mim mesmo.
-        Ide feliz, meu amigo. Não mais torture-se com isso, pois não há mais nada a temer. Vivamos o presente e que o passado apenas nos ensine.
            Fiz um leve aceno com a cabeça, peguei o cachimbo que derrubei no chão quando me levantei e repousei-o na mesinha ao meu lado. Fiquei olhando a chuva cair até que o sono chegou-me pesado e irresistível. Meus olhos baixaram devagar e só pude sentir um forte sentimento de felicidade me tomar.


Música para ouvir: The Rain Song – Led Zeppelin

Valeu pessoal. Voltando ao ritmo.