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domingo, 19 de agosto de 2012

Testamento

                Certamente nunca vi problema algum em conversar abertamente sobre a morte. Este assunto parece incomodar as pessoas, fazê-las pensar na única coisa que elas não têm controle, o único compromisso da vida em que elas não podem planejar, adiar ou cancelar.

            Mas não quero gastar o que me resta de tempo em reflexões clichês de aproveitar a vida, não desperdiçá-la. Fico realmente intrigado com pessoas que apontam para os outros dizendo que deveriam viver a vida como se fosse o último dia da sua vida. Isso não é possível, não conseguimos viver um dia por vez. Não é como se tivéssemos a opção de jogar tudo para o alto e entrar no caos. Eu acredito que a rotina anda de mãos dadas com a vida, é quase como o nosso instinto de sobrevivência.

            Pergunto-me o porquê de ter começado essa mórbida reflexão e então as duas palavras voltam a ecoar na minha cabeça, dançado como uma borboleta à minha volta. “Três meses” foi o que o médico disse. Eu tinha mais três meses… Acho que no fundo não me importo muito com isso. É mais como se eu tivesse uma vantagem sobre as outras pessoas e soubesse a minha data de validade.

            Normalmente as pessoas devem entrar numa jornada para o seu interior, pensando sobre a vida que levou e começar a tomar decisões idiotas como pular de paraquedas, mandar o chefe para o inferno e torrar as suas economias em festas. Elas acreditam que isto sempre foi o maior desejo das suas vidas, e que não podiam fazê-lo porque tinham família ou algo que as forçava continuar vivendo uma rotina chata e estressante.

            Não creio que elas realmente queiram fazer isso desesperadamente antes de morrer. Para mim essa é uma tentativa desesperada de serem lembradas. Este é o único meio de vencerem a morte individual. A história nos mostra diversos exemplos de como sermos imortalizados, e todos os homens com seus nomes nas folhas dos livros de História chegaram lá da mesma forma: através das nossas ações.

            Aí é o ponto em que eu queria chegar! Deixar a minha marca na história. E eu tinha três meses para isso. Eu tinha de fazer algo que me fizesse ser lembrado no mundo todo, esse sempre foi o maior desejo da minha vida. Eu não queria ser apenas mais um nome no obituário do jornal, eu desejava estar na primeira capa, ser a notícia do ano, da década, ter documentários e filmes sobre mim. E acho que não me saí tão mal assim, o mundo inteiro voltou-se para mim. Todos querem saber da minha vida, se o que me resta dela é o suficiente para uma última entrevista. Eu nunca gostei muito da mídia, mas ela serve muito bem ao meu propósito agora.

             Sei que tem muita gente me chamado de monstro e mal pode esperar pela minha morte, mas há quem me considere um herói que lutou contra o tirano vilão que oprimia a população sem voz. Eu não me importo com o que pensam de mim ou das minhas ações, a história não difere bem e mal, ela apenas registra os fatos, e foi exatamente o que eu fiz, uma grande bagunça. E esta é minha passagem para a fama póstuma.

***      ***      ***

            Eu passei a maior parte do julgamento com a cabeça em outro lugar. Pouco me importava o que seria dito ou a sentença que eu receberia, não fazia a mínima diferença. Mas confesso que foi até engraçado expressão de todos, sabendo que aquilo tudo era apenas uma formalidade, pura burocracia, todos partilhavam do sentimento de que eu sairia dali impune.

            Enfim, não há muito que eu possa fazer agora, apenas aguentar as dores finais que prenunciam o que já é esperado. Os três meses completaram há dois dias. Três meses desde a consulta com o médico, estou vivo há dois dias, funcionando na reserva, um pequeno presente para que eu possa ao menos ter certeza de que funcionou.

            Foi até engraçado comparar o meu feito com o de outras pessoas que marcaram a história da humanidade. Alexandre moveu seus domínios além do horizonte, Hitler foi a estrela principal do maior evento da história moderna, e eu só explodi um caminhão. Mas escolhi o melhor palco para isso.

            Parando para pensar agora, acho que fui meio hipócrita no início deste documento falando sobre pessoas que decidem fazer idiotices ao descobrirem que irão morrer logo. Eu realmente fiz a maior idiotice da minha vida três dias atrás, no dia que eu imaginava ser a véspera da minha morte. Roubei um caminhão tanque, cheio de gasolina e dirigi desesperadamente até o Congresso Nacional, não sei como escapei vivo de tudo aquilo, seguranças atirando de todos os lados e só tomei um tiro na perna. O resto todo mundo já sabe melhor até do que eu. Quando fui preso não tive mais contato algum com um meio de comunicação. Sou realmente grato por ter vivido ao ponto de ver que deu certo.

            Como já disse, não tenho mais o que fazer. Creio que os meus propósitos já foram explicados neste documento, o qual eu espero chegue ao conhecimento do povo. Este foi só mais um grito desesperado pela a vida, apenas mais um num mar de milhares de outros iguais a mim.

            No mais, estou orgulhoso de mim mesmo. Não tenho exigências quanto ao meu enterro, nem tenho a intenção de pedir alguma frase grandiosa na minha lápide, caso eu tenha uma. Não estou deixando bens materiais, vendi tudo o que tinha e dei o dinheiro a um terceiro a quem não identificarei, pois não vejo importância nisto.

José Maria da Silva

(Essa obra é uma ficção e eu não quero explodir o Congresso Nacional e os políticos corruptos que lá habitam, e caso alguém o faça eu não tenho nada a ver com isso)

Música para ouvir: Greystone Chapel – Johnny Cash (escrita por Glen Sherley)