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quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Uma história verídica

Deixando de lado as diversas brincadeiras que desfrutamos no decorrer da nossa infência, desde pequeno, nutri um grande prazer em ouvir as pessoas contarem histórias, desde as mais corriqueiras até as bem elaboradas sobre fantasmas, sacis e outros produtos da criatividade interiorana.
Considero-me felizardo por ter vivido onde ainda era costumeiro os vizinhos sentarem-se nas suas calçadas no fim da tarde e deixarem sua imaginação fantasiar um pouco mais as suas lembranças voláteis.
Certo dia, me lembrando das tantas histórias que ouvi desde criança, uma delas tem me agarrado ultimamente, uma história que meu pai me contou, mais uma das tantas em que ele atuou quanto ainda morava no Rio.
Não me lembro de detalhes sobre qual bairro ele morava, ou em que ano isso aconteceu. Muitas vezes os detalhes podem servir para frisar a veracidade da história, acho que isso vai da capacidade do narrador em ser convincente. Mas vamos à história.
Meu pai tinha acabado de retornar do trabalho e estava conversando com os amigos quando ouviram alguém gritar quase que comemorando que uma mulher tinha se jogado na frente do trem que passava ali perto. Sempre me espanto como as pessoas podem vibrar quando seu tédio é afastado, qualquer evento que quebre a rotina é recebido de braços abertos, mesmo sendo, como na maioria das vezes, alguma tragédia.
Ao chegarem no local, meu pai e os amigos perceberam que a mulher na verdade havia se deitado com o pescoço na linha do trem. Mas a surpresa e o choque foram maiores por não encontrarem ao lado do corpo a cabeça da mulher suicída. Olharam ao redor mas não encontraram nada.
Até que um morador da rua, apareceu com os dentes arreganhados de tamanho triunfo em ter ganho o maior prêmio da festa. Ele carregava a cabeça da mulher segurando-a pelos cabelos, gritando "Olha a cabeça da mulher aqui!" e deixando os curiosos ao redor vislumbrarem o seu troféu. A maioria aconselhou que ele parasse com aquilo, abominavam a atitude do rapaz de zombar do corpo, mas talvez ele apenas visse aquilo como inveja... Creio que existam muitas pessoas como este por aí.
Terminado o alvoroço, todos voltaram para as suas casas, acredito que já fantasiando cenas que poderiam ter acontecido, e que certamente acrescentariam quando fossem contar aos pobres infelizes que não poderam presenciar o fato.
Então, no dia seguinte, desta vez meu pai ficou sabendo pelos vizinhos que o homem que declarou posse da cabeça de uma pessoa morta no dia anterior, no mesmo horário que a suicída, deitou-se na linda do trem e teve o mesmo fim que a mulher.
Se o fim da história foi apenas um fim fantasiado pelo meu pai, eu não sei. Mas a verdade realmente não me importa. Para mim, a verdade estraga as histórias. Para mim, melhor que presenciar os fatos, é ouvir os vários toques pessoais adicionados pelos narradores.

Demorei mas voltei... tentar postar com mais frequência. xD
Abraço, pessoal.

Música para ouvir: A Boy Named Sue - Johnny Cash

domingo, 25 de setembro de 2011

Monólogo

            Afundei-me na poltrona da sala defronte a janela que dava para o jardim dos fundos. Peguei o cachimbo que descansava na mesinha ao meu lado e apanhei os fósforos no bolso do meu casaco. Acendi o cachimbo e dei uma grande tragada enquanto me recostava e a poltrona me abraçava aconchegante. Soprei a fumaça prazerosamente e desfrutei dos segundos preguiçosos daquele fim de tarde.
            Lá fora, o jardim de cores fortes e vivas enegrecera com as pesadas nuvens que pairavam no céu, traguei outra vez, mais devagar, e ouvi no telhado um barulhinho simultâneo com o soprar da fumaça para a sala escura. Gotinhas solitárias batiam na telha anunciando o fim da estiagem. Poucos segundos se passaram até as poucas gotinhas aumentarem, balançando as flores e folhas do jardim, até formarem um som contínuo, impossível de decifrarmos a individualidade. Senti a poltrona mais confortável e o cachimbo mais prazeroso. Como eu adorava aquilo.
            Era conhecido por muitas pessoas por meus gostos estranhos e inexplicáveis, e não tenho motivos para descordar, sinto-me lisonjeado por apreciar o que os outros desmereciam. A chuva sempre me fascinou tremendamente. Uma dádiva dos céus. Como as pessoas poderiam não gostar da dádiva de encharcarem-se com a vida caída do céu? Eu poderia passar horas a apreciar as gotas caírem sem pressa, sem destino, sem permissão, esparramando nas superfícies, abraçando a todos. Os minutos correram calmos e silenciosos enquanto me afundava em júbilo que umedeceu-me os olhos.
            Agora tudo a minha volta me reconfortava e me felicitava por existir, traguei mais uma vez e deixei a fumaça vazar para fora de mim tão lenta que parecia solidificar-se enquanto dançava em pleno ar. Meus olhos mudaram de foco, deixei de apreciar a chuva cair no jardim e as gotas correrem na janela e passei a prestar atenção na fumaça. Esta tomou toda a sala, correndo pelos móveis e pelas paredes, do teto ao chão, a fumaça tomava todos os cantos. Estupefato, tentei entender o que havia acontecido. “Meu Deus!” exclamei, a casa deveria estar pegando fogo. Mas foi antes do meu corpo reagir ao perigo que a fumaça começou a mover-se com mais velocidade, circulando a minha volta e condensando. Rodopiou, rodopiou e foi-se unindo, comprimindo até uma bola branca pairando no ar na minha frente. A esfera alva ficou subindo e descendo lentamente no ar até que começou a tremer e num átimo tomou forma de homem.
            Encarei incrédulo o homem, emanava uma luz difusa e era inconsistente assim como a fumaça que lhe deu vida. Ele não tocava o chão, flutuava à sua própria órbita. Levei breves segundos para me concentrar no que me defrontava e mirei-me o olhar em seu rosto. Um gélido arrepio me correu a espinha quando nossos olhos se encontraram. O homem me encarava, mas estava tristonho, envolto em sua amargura. Senti-me sair do corpo quando associei o rosto do homem a uma lembrança muito familiar, pensei estar diante do meu pai, que morrera quando eu ainda era pequeno. Mas o homem possuía alguns traços peculiares que proporcionavam a distinção. O homem aparentava ter ao menos uns dez anos a mais que meu pai quando morrera, e não imaginei ser possível a alma de uma pessoa envelhecer após a morte. Além disso, meu pai era grisalho, e o homem tinha uma cabeleira preta que poderia ser reluzente como a minha se fossem fios de cabelo reais que a compusesse.
-        Muito me agrada o cair da chuva. – disse o homem me olhando nos olhos mas sem perder a tristeza evidente - Assim como tens os olhos umedecidos pela alegria do momento, muitos podem tornar-se melancólicos com a alegria que sentem, muitos podem sofrer por estarem felizes.
            “Mas minha melancolia nada tem a ver com a felicidade pela chuva. Minha melancolia é compartilhada por muitos que sentem uma dor universal, que atrevo dizer sortudos os que não a sentiram. Sofro pela dor de amar.”
            Permaneci ali, impossibilitado de livrar-me do abraço outrora confortante da poltrona e fugir dali, fugir do homem que eu não sabia estar enxergando na minha mente ou na minha sala. “Ainda pequeno fui mandado por minha família para um seminário. Segui veemente meu destino planejado por terceiros e não tinha problemas com isso. Mas minha mente talvez tenha sido minha maior dádiva e minha pior maldição. Não enxergava a fé, esta me escapava nos dedos assim como a matéria com a qual sou feito agora. Não me sentia correto continuar meu destino se não fosse de corpo e alma, então deixei o seminário e encarei os infinitos caminhos que temos na vida, agora sem ter alguém para indicar qual seguir.”
            “Arrumei um emprego como ajudante de escrivão e encontrei um lugar para morar. Tudo era novo e emocionante e por mais que praguejassem, a chuva que caía sempre me trazia a renovação da vida pelos céus, lavando as minhas incertezas e limpando a minha mente. Estava muito feliz e então a encontrei, Cecília.”
            Os olhos do homem lampejaram uma forte emoção por um segundo, até voltarem a transmitir dor e pesar.
-        Apaixonamo-nos instantaneamente, pela primeira vez eu me sentia completo, como se o destino atuasse como deveria ser, sem predição, sem arreios. Éramos tão compatíveis, estávamos em sintonia sempre, e nada importava ao nosso redor se estivéssemos juntos, completos.
            “Não levou muito tempo para vivermos juntos, era como se fosse algo completamente natural, não havia nada de incomum se ocorria entre nós. Agíamos como se estivéssemos esperando pelo o nosso encontro desde que nascemos, e o destinho traçado para nós fora maior que os destinos que pensaram ter escolhido vivermos.”
            A expressão de tristeza do homem evoluiu para pura dor e pesar. A amargura era tamanha que tornava-se quase mais apalpável que o próprio homem, me contraí involuntariamente protegendo-me da dor que pareceu ser minha. Apesar disso tudo, o rosto do homem tornava-se cada vez mais familiar, era quase possível emoldurar em volta do homem e dizer ser um retrato de algum parente meu, imaginei a moldura do espelho do meu quarto rodeando o homem a me refletir um reflexo flutuante.
-        Eu amava Cecília de todo o coração, e ela retribuía esse amor talvez até mais. As coisas não poderiam estar melhor até que a minha maldição mais uma vez surgiu para balançar o meu destino, mas desta vez bem mais forte, assim como as gotas da chuva balançam com fúria as flores do jardim atrás de mim.
            Eu já não prestava mais atenção na chuva, nem em nada ao meu redor, já perdera até a curiosidade em descobrir de quem seria aquela visão que me surgira, a única coisa que me importava era a história que o homem suspirava depressivamente.
-        Minha mente! Sim! - o homem transparecia fúria agora – Esta maldição não me pode aliviar, sempre em busca da minha ruína. Pois esta devia deliciar-se mostrando a razão sobrepujar a emoção com tamanha tirania e persistência.
            “Cecília fora noiva antes de me encontrar. Aquilo não me incomodara de início, mas o tempo é uma constante que pode nos salvar ou nos arruinar, e ele escolhera a razão para atuar em mim e definhar-me aos poucos.”
            “Passei a questionar-me se Cecília ainda guardava algum apreço por seu antigo companheiro, se ainda pensava nele quando a noite caía, quando as lembranças dominam a mente. Minha curiosidade por seu passado foi o maior erro que pude cometer. Penso agora que poderia ser diferente se a ignorância tomasse a minha mente e o amor triunfasse.”
            “Cecília não ligava para o passado, só nós dois que importava. Mas aos poucos os detalhes do seu passado me entristeciam, me indignavam. Oh, como a mente pode ser uma ferramenta tão cruel, a mesma mente que podia definir leis do universo e compor belíssimas obras, também poderia corroer a alma de um homem e matá-lo.”
            “Saber que outro homem possuíra o calor de Cecília me repugnava. Mas não me repugnava ela, me repugnava saber que o homem ainda podia existir em algum lugar. Como poderia viver depois de tudo que fizera? Cecília passou a sofrer com as minhas ideias, ela me amava e sentia-se incapaz de mudar o seu passado para agradar o meu grande e doentio ego.”
            “Eu tinha os meus momentos de claridade, via que estava agindo como um tolo, deveria viver o presente com a mulher que amo, o passado ficara para trás, onde não poderia mudar. Erro meu, o passado não pode mudar a si mesmo, mas é um grande fator de mudança do presente. Cecília não sabia mais o que fazer para nos salvar, ela me amava muito e eu a ela, mas a minha mente estava tomando o controle, pois tentava resolver meus dilemas racionalmente, um erro que os homens costumam cometer quando deveriam resolver tais problemas do coração com a emoção.”
            Boquiaberto, deixei o cachimbo cair no meu colo enquanto devorava a história do homem sem perder nenhum detalhe, como se a sua dor fosse minha. O rosto do homem começou a abrandar e acalmar-se até voltar à eventual tristeza e amargura.
-        Desta vez a minha mente não corrompia apenas o meu destino, mas tornava a vida de Cecília muito infeliz, porque ela sofria os meus sofrimentos. Tornei-me psicótico com o seu passado e deixei de viver o nosso futuro. Até o ponto que não pude voltar. Eu fugi de Cecília para um lugar em que ela não poderia me procurar, em que estaria tão longe que não lhe causaria mais sofrimentos. Eu nunca mais a vi... espero que tenha dado certo...
            A voz do homem começara a distanciar-se embora permanecesse na minha frente, seu olhar correu pela sala e por fim encontrou o meu. Vi seus lábios se moverem em algo que poderia ser um “Eu te amo, Cecília.” Mas seu corpo começava a perder consistência e tornar-se nuvem novamente. O homem foi-se dissolvendo até sumir em si mesmo.
            O som da chuva voltou à minha mente como se estivesse mudo antes e levantei-me num susto abrupto. Sentia a amargura que o homem sentira. Chorei em pesar com seu sofrimento e vi, agora certo de que era na minha mente, o rosto do homem rejuvenescer e mostrar a familiaridade com que tanto me intriguei.
            Sentei-me novamente na poltrona e voltei a encarar a chuva, que agora caía serena. Foquei meus olhos nas nuvens negras no céu que me lembravam vagamente meu visitante inusitado. Sorri para as nuvens e disse para mim mesmo.
-        Ide feliz, meu amigo. Não mais torture-se com isso, pois não há mais nada a temer. Vivamos o presente e que o passado apenas nos ensine.
            Fiz um leve aceno com a cabeça, peguei o cachimbo que derrubei no chão quando me levantei e repousei-o na mesinha ao meu lado. Fiquei olhando a chuva cair até que o sono chegou-me pesado e irresistível. Meus olhos baixaram devagar e só pude sentir um forte sentimento de felicidade me tomar.


Música para ouvir: The Rain Song – Led Zeppelin

Valeu pessoal. Voltando ao ritmo.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O Casal Winter Hill



James Winnfild chegara na pequena cidade de Winter Hill quando tinha dez anos, seu pai decidira abrir um pequeno mercado ali depois de ganhar uma grande quantia de herança de uma tia por parte de pai. Anne White nascera e crescera em Winter Hill, sua família está lá desde os seus bisavós, que se mudaram para lá no mesmo ano da fundação da cidade e entraram no ramo da sapataria desde então.
No seu primeiro dia em Winter Hill, James caminhava pela calçada das pequenas lojas que seriam vizinhas do grande mercado que seu pai iria criar usando o espaço de três lojas. James seguia em frente olhando para a rua, vendo as carroças passarem mais apressadas do que deveriam. Chegando à esquina, já ia avançando para a rua quando Anne o puxou de volta pouco antes de uma carroça passar rente à calçada. A carroça estava tão rápida que arremessou uma onda de lama nos dois sentados na calçada que se olhavam com olhos arregalados. James tirou do bolso do seu casaco um lenço, aprendera com seu pai a sempre carregar um lenço consigo, e ofereceu a Anne como forma de agradecer por ter-lhe salvo a vida. Anne abriu um sorriso largo, pegou o lenço e limpou o rosto de James ao invés do seu próprio. Naquele momento, James, mesmo com seus dez anos e oito meses de idade, soube que estava apaixonado, e queria passar o resto da vida com a menina na sua frente.
O tempo provou que a paixonite infantil amadureceu e se tornou amor verdadeiro. James e Anne eram frequentemente referidos como “o casal Winter Hill” e ambos apenas se olhavam e riam felizes ao ouvir seu apelido. E foi no inverno do ano seguinte ao da morte dos pais de Anne, fato que abalou o casal com a mesma força, que James a pediu em casamento, quando ambos tinham 23 anos. Os pais de James acharam a decisão muito precoce, muito embora soubessem que os dois já estavam decididos daquilo antes de informá-los, e pediram para que o casal noivasse por dois anos, quando James assumiria o mercado do pai. James e Anne aceitaram a proposta de bom grado, afinal eles praticamente já viviam como casados, o casamento seria apenas uma oficialização.
Um ano se passou e decidiram viajar para o litoral, onde passaram duas semanas em um pequeno chalé em uma montanha perto do mar. No último dia antes de voltarem, James preparou uma festa surpresa para Anne. Eles casaram no alto da montanha, vislumbrando o mar. Os pais de James relutaram quando souberam, mas, no fundo, sabiam que algo como aquilo poderia acontecer, qualquer um podia ver o amor transbordar dos dois quando estavam juntos.
O casal Winter Hill vivia feliz em uma casa, perto de um bosque saindo da cidade, construída pelo pai de James como presente de casamento, James assumira o negócio do pai e já planejava abrir outro mercado em uma cidade vizinha, quando o casal trouxe a notícia que toda a cidade esperava, Anne estava grávida. O casal agora parecia mais feliz que nunca.
Cinco meses se passaram. Certo dia, num fim de tarde, James saíra mais cedo do mercado pois queria chegar logo em casa e preparar o jantar para Anne, que reclamava estar bem e podia fazer essas simples tarefas, mas ele nunca dava ouvidos. James decidiu voltar a pé para casa, chovera pela manhã, mas o sol dominou todo o resto da tarde e nada melhor que uma caminhada para abrir o apetite, James estava ciente de sua pouca habilidade culinária embora Anne nunca reclamasse e quase sempre repetisse os pratos que ele fazia. Na metade do caminho, lembrou-se que precisava de cenouras, planejava fazer um ensopado de carne e Anne adorava cenouras. Voltou agora um pouco apressado, queria chegar logo em casa e ver o doce e caloroso sorriso de sua esposa.
James avançou a rua sem estar ciente disso, do mesmo modo que fizera no dia em que encontrara Anne, mas dessa vez ela não estava lá para salvá-lo. James deu três passos em direção a outra calçada, perdido em pensamentos, quando uma carroça apressada, igual às que vira quando criança, veio em seu rumo tão rápido que nem ele nem o homem na carroça puderam fazer algo para evitar o que se seguiu. James foi atropelado pela carroça. O cavalo o derrubou e um dos seus cascos o acertou no rosto, em seguida uma roda da carroça novamente o atingiu no rosto. A carroça virou e espalhou pela rua as abóboras que o homem transportava. O homem escapou com apenas um leve arranhão no ombro esquerdo e uma dor no braço esquerdo. Ele se levantou e correu em direção do transeunte que acabara de atropelar. A lama quase seca pelo sol vespertino agora estava molhada, gerando pequenas poças escarlates que se enchiam com o sangue que corria do rosto de James, estirado no chão lamacento.
James foi levado às pressas ao hospital da cidade e Dr. Gibson conseguiu lhe salvar a vida, mas sofreu muitos danos na cabeça e não era possível saber quando iria acordar. O dono da carroça, que foi levado ao hospital também, após o relatório do médico, decidiu que ele mesmo deveria informar à esposa do enfermo o ocorrido, e o Dr. Gibson, que era amigo do pai de James achou que seria melhor deixar com o pai de James a função de contar à Anne sobre a tragédia. O médico enviou um criado à casa dos Winnfild, e poucas horas depois, Anne apareceu no hospital, seu rosto estava vermelho e marcado de lágrimas, mas transpirava força e determinação para ir até o leito de James.
- Senhora, me perdoe. Meu nome é Thomas Jackson e... fui eu... quem atropelou o seu marido. Disse o dono da carroça olhando para o chão. Anne acertou-lhe um tapa no rosto e seguiu em direção ao quarto em que repousava James. Thomas sentiu a maçã do rosto queimar, mas permaneceu imóvel no branco corredor do hospital, desolado, frustrado, decepcionado consigo.
O Dr. Gibson já previa a vinda de Anne e a convenceu a não entrar no quarto. Alertou-a dos danos sofridos no rosto do marido e que ela deveria esperar que eles pudessem, agora que estabilizaram o estado de James, tentar recuperar o seu rosto. Anne encontrou todas as forças que lhe restavam para permanecer consciente, ela não se permitiria desmaiar, e permaneceu sentada ao lado da porta do quarto até que o pai de James apareceu para levá-la para casa, o médico disse que não seria bom para a gravidez dela que passasse por tamanha tensão.
Saindo do hospital com o auxílio do sogro, Anne parou na porta. O pai de James logo entendeu e não a forçou a continuar andando. Thomas estava do lado de fora do hospital, com duas crianças o puxando um por cada braço. “Papai, o senhor está bem? Nós conseguimos recuperar algumas abóboras.” Disse o menino. A menina parecia ainda estar se recuperando do susto e continuava a enxugar as lágrimas que não paravam de cair. Anne que primeiro sentira ódio do homem, agora já não tinha certeza sobre o que acreditar, se sentia muito fraca, pediu para o sogro levá-la para casa. Ela precisou apenas encostar o rosto no travesseiro para dormir profundamente.
Anne acordou no dia seguinte com alguém batendo à porta. Imaginou ser James que fora comprar pães frescos para o café da manhã e esquecera a chave da porta, enfim tudo não passara de um terrível pesadelo. Ela disparou até a porta, arrumando-se como podia, tentando limpar as manchas das lágrimas que correram a noite toda enquanto dormia. Ao abrir a porta, o baque veio todo de uma vez junto com o vento frio que adentrou em casa. Não era James que estava na porta com pães frescos na mão e um largo sorriso no rosto dizendo estar frustrado por ter esquecido a chave e não conseguir surpreendê-la com um café da manhã na cama. Era Thomas quem estava à porta, com um chapéu surrado em mãos, “Bom dia, senhora Winnfild. Sei que a senhora tem todos os motivos para não querer nem olhar para mim. Eu também não vim aqui pedir perdão, pois eu mesmo sei que não o mereço. Eu vim aqui para dizer à senhora que ajudarei no que for possível.” Anne o olhou impiedosamente, agradeceu por não ter mais lágrimas para chorar naquele momento, e fechou a porta. Thomas caminhou até a carroça, que escapou pouco avariada, e pegou uma grande abóbora que trouxera, Anne que espiava da janela viu novamente as duas crianças que puxavam o homem na noite anterior, o menino aparentava ter 8 anos enquanto a menina não deveria ter mais que 4. Thomas trouxe a abóbora até a entrada e bateu à porta novamente, as crianças olhavam atentas para o pai, então o coração de Anne amoleceu e ela abriu a porta. “São seus filhos?” perguntou Anne. “Sim senhora, o mais velho se chama Jack e a menina chama-se Rosalie” disse Thomas enquanto carregava a abóbora para a cozinha guiado por Anne. Thomas deixou a abóbora, acenou e ia embora quando Anne o chamou “Os seus filhos já tomaram café da manhã?” Thomas vacilou e respondeu que não, mas já estava a caminho do armazém, ia vender algumas abóboras e conseguir dinheiro para o café. Thomas já estava partindo quando Anne gritou, enquanto corria em direção à carroça “Espere! Isto é para as crianças.” e entregou uma cesta com quatro pães. As crianças arregalaram os olhos maravilhadas, o pai as ordenou que agradecessem e então partiram.
Os dias se arrastaram com Anne indo diariamente ao hospital na esperança de receber boas notícias, mas o estado de James permanecia o mesmo, e ela parecia ficar cada dia mais fraca e abatida. O Sr. Winnfild sugeriu que ela fosse morar com eles até que James acordasse, mas Anne se recusava, apesar de toda a tristeza, tinha esperanças de James acordar antes daquilo ser necessário.
Um dia, quando Anne retornava do hospital, ela percebeu a carroça de Thomas em frente à sua casa. Ele aparecera outras vezes para trazer algumas abóboras ou outras coisas necessárias no dia a dia que Anne pedia para que trouxesse quando fosse à cidade fazer compras. Apesar do que Thomas fizera ao seu marido, Anne já não lhe guardava mais rancor. Thomas estava em pé ao lado da carroça esperando enquanto seu casal de filhos corria nos fundos da casa perto do bosque. Por um momento Anne reparou a beleza de Thomas que passara despercebida em função da fúria e o ódio que tinha pelo homem antes, ele era alto, loiro, tinha um porte maior que o de James em função do trabalho pesado e olhos quentes e reconfortantes.
O peito de Anne deu uma pontada de dor pelo que ela pensou. Como poderia estar admirando a beleza do homem que pode ter causado a morte do seu marido? Ela vacilou por um instante mas continuou em frente quando ele a avistou.
- Desculpe-me por aparecer assim sem avisar - desculpou-se Thomas abrindo um sorriso constrangido e sincero.
- Não se preocupe com isso... Se tiver algum tempo posso arranjar algo para as crianças comerem - respondeu Anne, um pouco envergonhada com a intimidade que desenvolvera com o homem.
- Eu agradeço, mas só passei para deixar um pouco de carne que consegui na feira ontem e saber se a senhora queria uma carona para o hospital hoje.
- Eu acabei de voltar de lá. Mas o senhor não precisa negligenciar o seu trabalho para me levar à cidade, já está fazendo muito me trazendo essas coisas.
- Nunca farei algo que chegue perto de me redimir, mas estou indo ao hospital para visitar a minha esposa.
- Meu Deus, está tudo bem? Se me permite perguntar – Anne percebeu que Thomas não tinha mencionado a esposa desde então, ela nem sabia se ele era casado.
- Ela está muito doente, está muito fraca, o médico já fez diversos exames ainda não sabe do que se trata.
- Sinto muito por isso. Há quanto tempo ela está doente?
Thomas tremeu. Já não olhava mais nos olhos de Anne e pareceu receoso de responder. Anne ficou confusa com a sua reação, talvez o assunto o machucasse ou relembrar isso lhe tirasse as poucas esperanças que tinha.
- Ela está no hospital desde o dia que... eu... atropelei o Sr. James. Quando soube, fui correndo para o hospital e estava tão desesperado que não pude controlar a carroça quando o Sr. James entrou na minha frente. Me perdoe por isso, por favor...
Os olhos de Anne embaçaram com as lágrimas prontas para rolar por sua face, a conversa lhe trouxe tanto raiva quanto compaixão pelo homem na sua frente. Ela não disse mais nada, Thomas pareceu entender e a acompanhou em silêncio até a cozinha, onde ele deixou a carne e chamou as crianças para irem embora.
Naquela noite, Anne sentiu-se extremamente sozinha. Queria que as coisas pudessem voltar ao normal, que tudo fosse um horrível pesadelo. Já estava perdendo as esperanças, esperança em James acordar e esperança em continuar viva. Foi então que sentiu um chute na barriga. Seu bebê lhe dizia que não estava sozinha, que não importasse o que acontecesse, ela tinha um motivo para continuar vivendo. Após dias de tristeza e angústia, ela teve um motivo para chorar de felicidade.
A medida que os dias passavam, as esperanças esvaíam-se como uma fina areia que escapara pelas minúsculas brechas de uma mão fechada, e uma segunda mão se fechava sobre o coração de Anne, que se agarrava ao seu bebê para continuar vivendo. Dois meses se passaram desde o acidente de James, e Anne não era nem sombra da mulher de antigamente. A linda mulher com o sorriso quente e espontâneo que alegrava tudo ao seu redor agora estava esquelética, com olheiras negras e o lindo cabelo longo e brilhante que fora um dia agora estava despenteado, sem vida, assim como ela.
Um dia, no final da tarde, Anne estava recolhendo a roupa do varal quando sentiu uma forte pontada no ventre. Ela se assustou, a dor aguda que persistia em seu ventre lhe trazia de volta à vida, estava fraca e vacilou por um instante quase desmaiando. Estava sozinha em casa e Thomas não ficara de lhe trazer nada hoje, o medo começou a arranhar seu peito e o desespero subiu à garganta.
Foi quando ela ouviu o som que tornara-se familiar, os cascos do cavalo cavando a terra dura do caminho que trazia à sua casa, as rodas que rangiam preguiçosas, era a carroça de Thomas que estava a caminho, Anne suspirou aliviada, Thomas lhe trazia tamanha segurança que ela perdia qualquer medo e ansiedade quando estava com ele, e o som lhe informava que não havia mais o que temer, ele estava chegando.
Quando Thomas avistou a casa, rapidamente percebeu o corpo jogado no chão, não precisou pensar para saber que era Anne que estava caída e pulou da carroça e foi correndo até ela. Ela estava consciente, mas muito debilitada para ficar em pé. “O que aconteceu, Sra. Winnfild?” quase gritou com o susto. “Acho que o bebê vai nascer... acho que está na hora.” suspirou Anne refletindo na expressão as dores das contrações que sentia.
Thomas a levou para dentro e praguejou por ter vindo sozinho, ela não estava em condições de ser levada ao hospital, e não havia como pedir ajuda. Uma lágrima caiu sobre o rosto de Anne e ela percebeu que o homem, embora procurasse esconder isso e se focar na situação, estava terrivelmente desolado.
- Thomas... o que aconteceu? - Anne perguntou.
- Não é nada... a Sra. Não precisa se preocupar... eu... fiz o parto dos meus filhos. Eu posso... - Thomas não conseguiu terminar a fala e chorou sem se segurar.
Anne, mesmo debilitada e com muitas dores percebeu o que tinha acontecido.
- A sua esposa? Ela está bem?
- Não, senhora... Ela... Ela morreu há algumas horas. Eu estava no hospital até agora... Ela estava muito fraca e teve um crise respiratória... Não se preocupe, eu vou ajudar a senhora. Disse o homem em meio às lágrimas.
As dores estavam ficando mais fortes. Sofrendo com as dores e a fraqueza, Anne teve um pressentimento estranho que quase lhe passou despercebido, mas um frio na espinha lhe indicou que algo de ruim estava prestes a acontecer.
Ao mesmo tempo, no hospital, James abriu o olho direito. O Dr. Gibson estava trocando as suas ataduras com uma tesoura enorme e pontuda e ambos se assustaram com a situação.
- Onde está Anne? Quase gritou James, percebendo que havia algo errado com a sua fala, não sentia movimento no lado esquerdo da sua boca.
- Acalme-se, James. Você se lembra de mim? Sabe quem eu sou? Disse o médico procurando retomar a postura profissional e recuperar-se do susto.
- Dr. Gibson... Eu fui atropelado... Onde esta Anne? Disse James, parecendo tentar recuperar a última lembrança que teve.
- Ótimo! Me parece que o seu cérebro não sofreu danos relevantes. Não se preocupe agora, precisa ficar aqui para mais alguns exames e possivelmente amanhã poderá ir para casa. Mandarei alguém à casa de seus pais agora para avisar-lhes que acordou. Apenas descanse, daqui a pouco sua família virá te ver.
O Dr. Gibson colocou a grande tesoura no seu casaco e saiu do quarto.
James permaneceu quieto ainda tentando reorganizar seus pensamentos, mas estava com uma sensação estranha e pressentia algo ruim. Ele se levantou e caminhou até o pequeno banheiro do seu quarto. Foi lavar o rosto e sentiu um deformidade no seu lado esquerdo do rosto, percebeu que não estava enxergando bem também. Acendeu a luz do banheiro e olhou para o espelho.
O terror correu pela espinha de James, que defrontava pasmo seu novo rosto. Uma grossa camada de pele caía da sua testa e lhe cobria o olho esquerdo, sua maçã esquerda do rosto afundara e sua boca parecia ter sido derretida no lado esquerdo. Na verdade, parecia que lhe tinham jogado um ácido no lado esquerdo do rosto, nem mesmo tinha cabelo naquela área e ele parecia não ter mais a orelha esquerda e tinha um acúmulo de carne na frente do rosto que deveria ser o seu nariz antigamente. James começou a chorar, não queria acreditar que era aquela criatura refletida no espelho. Estava caindo na escuridão dentro de si quando uma brisa gelada lhe correu à nuca. Algo ruim estava para acontecer. “Anne!” ele disse antes de seguir para a porta do quarto.
O hospital estava totalmente silencioso, James sabia que não teria para sair, sabia que deveria sair sem que percebessem. Esgueirou-se até a sala do Dr. Gibson, que era o último obstáculo até a saída, e espiou para dentro da sala. O médico não estava lá, talvez tenha resolvido ir pessoalmente avisar as “boas novas”. Mas o seu casaco ainda estava lá, talvez tenha apenas ido ao banheiro, James sabia que não teria muito tempo se tivesse suposto corretamente, então rapidamente vestiu o casaco do Dr. Gibson e correu para fora do hospital.
Fora do prédio estava muito escuro, não se via pessoas na rua. James correu até sair do campo de visão do hospital e seguiu em um passo apressado para a sua casa. Seguia em silêncio, parecia ter reorganizado tudo que era importante de se lembrar, estava casado com Anne, morava em uma casa perto do bosque saindo da cidade, estava no lugar de seu pai nos negócios da família... e fora atropelado por uma carroça. A cena da carroça investindo furiosamente contra ele lhe quebrava por dentro, por mais que tentasse, não conseguia esquecer a singular dor dos cascos do cavalo entrando em atrito com a sua pele, não precisava se esforçar para lembrar da dor, quase sentir, da roda da carroça vindo na sua direção, a madeira amassando e rasgando a sua carne impiedosamente.
Ao virar uma esquina, James deu de frente com um menino que corria despreocupadamente, isso o fez lembrar do acidente novamente. O menino se levantou e olhou James no rosto para se desculpar, mas nenhum pedido de desculpas saiu da sua boca, que ficou paralisada e trêmula por um minuto, o que saiu de sua boca foi apenas um grito de pavor. James não sabia o que fazer para acalmar o menino que chorava sem parar até que uma mulher que deveria ser a mãe do menino apareceu.
- O que acontec... Oh Meu Deus!!! - gritou a mulher encarando James com o mesmo rosto que o filho fazia.
- Seu monstro!!! - disse a mulher por fim, puxando o filho e caminhando para longe – Deveria ao menos se cobrir.
James permaneceu imóvel, em pé na rua. As palavras ecoavam na sua mente “seu monstro... monstro... deveria ao menos se cobrir... monstro... se cobrir...” James, num ato de costume, pôs a mão no bolso para pegar o lenço que não deixava de carregar consigo desde que era criança. Mas seus dedos não tocaram o tecido macio o sedoso que estavam acostumados, tocaram uma superfície dura e gelada, com formas arredondadas que iam se achatando e ficando mais finas e perigosas, e mortais, e monstruosas... “monstro... monstro... monstro...” as palavras ainda ecoavam impiedosas. James escorregou os dedos para os círculos do objeto e um choque lhe correu pelo corpo. “Monstro... monstro... monstro...”
James correu atrás da mulher que andava apressada tentando acalmar o filho que ainda soluçava um pouco. “Eu sou um monstro.” disse James a si mesmo. Quando a mulher foi olhar para trás, James lhe cravou a tesoura no pescoço, um esguicho de sangue vivo borrifou no seu filho que assistia àquilo incrédulo. Rapidamente, James tirou a tesoura da mulher fazendo o sangue espirrar ainda mais e com um movimento impressionantemente hábil, James cortou a garganta do menino antes que este gritasse novamente. O sangue de mãe e filho corria pela calçada, James também o tinha nas mãos e no rosto de monstro. “Eu sou um monstro.” repetiu James, dando meia volta e disparando para a sua casa.
Anne fazia força e sofria a cada contração que vinha. Thomas parecia ter esquecido do luto naquele momento, estava totalmente concentrado em conseguir fazer o parto e assegurar que ambos, mãe e filho, sobrevivessem. “Vamos Sra. Winnfild, está quase lá!” dizia a todo momento. Anne, apesar de tudo, encontrava forças para continuar lutando, tinha de fazer algo para retribuir àquele pequeno ser dentro dela que a manteve viva quando ela já não tinha mais vontade de viver. Mais uma vez, Anne sentiu o calafrio, mais forte desta vez, mais próximo talvez?
Agora a noite já caia pesada e escura em Winter Hill, o vento gelava o sangue quase coagulado nas mãos e no rosto de James, que agora andava num ritmo mais lento, sua cabeça doía muito, estava difícil de respirar, suas pernas pesadas, mas ele precisava chegar em casa, precisava que Anne o tornasse humano novamente, quando Anne o encontrasse, tudo voltaria ao normal, o pesadelo teria fim, eles iriam se mudar e um dia ter um filho que seria criado com todo o amor. James sentiu-se perturbado por um segundo, havia algo importante a ser lembrado... “monstro... monstro... monstro...” James gritava para si mesmo em sua mente. Era isso, ele era um monstro, não havia escapatória do pesadelo, o monstro fica preso no pesadelo quando você acorda, por isso o medo vai embora.
Anne procurava todas as suas forças, Thomas lhe dissera que já podia ver a cabeça da criança e, lutando contra a fadiga e a exaustão, Anne empurrou com tudo que ela pode, até que a dor aliviou e Thomas ergueu a pequena criança. Os olhos de Anne brilharam ao vislumbrar a pequena criatura que a mantivera viva, como um ser tão pequeno e indefeso lhe deu tanta força, tanta coragem para seguir em frente. A expressão de Thomas estava preocupada, mesmo depois de tudo ter acabado, mesmo depois de segurar aquele ser milagroso, Thomas não parecia feliz... “É mesmo!” pensou Anne “Embora a vida deva trazer felicidade a Thomas, a morte ainda está fresca em seu coração, a perda da esposa é um rio incontrolável que não há barreiras na nossa alma que possam contê-la.”
James agora estava perto da sua casa, sofrendo com seus conflitos internos, confuso, sua mente era uma bagunça, só havia uma ideia fixa para ele, ver Anne. Entrou correndo pelo caminho que levava à sua casa, sentia seu corpo pesado, sua respiração ecoava na cabeça e seu peito parecia inchar a cada passo que dava. Parou no ponto em que já era possível ver a sua casa, estava confuso com a carroça parada de qualquer jeito no meio do caminho. Era esse o seu mal pressentimento? Anne corria perigo? James segurou firme a tesoura gelada que jazia no fundo do bolso do seu casaco.
Anne ergueu os braços para que Thomas lhe passasse o seu filho, queria pegá-lo, senti-lo em seus braços, agradecer-lhe por existir. Mas Thomas continuava segurando a criança, olhando para ela com os olhos vazios, como se estivesse enfrentando um terrível dilema. “Me dê o meu filho, quero vê-lo” pediu Anne carinhosamente. Foi então que Thomas olhou para ela e uma lágrima rolou o seu rosto. “Me perdoe, Sra. Winnfild... a criança... está... morta.” disse lutando contra a dor. Após ouvir a última palavra, Anne não sentiu mais nada depois disso, estava fora do corpo, estava em um segundo plano, o olhar inexpressivo, seu corpo agora era uma frágil biscuit quebrável ao mínimo contato e sua boca suspirava inconscientemente as mesmas palavras: “Os dois me abandonaram... os dois me abandonaram... os dois...”
James caminhou cuidadosamente até a porta, ela estava aberta. Perturbado e com medo de algo de ruim ter acontecido a Anne, segurou mais forte a tesoura. Ouviu um murmúrio vindo da sala, tomou cuidado para não fazer barulho, sua respiração pesada já fazia alarde o suficiente, e a poucos centímetros da entrada da sala, ouviu a voz de Anne. Ele sentiu como se o seu coração voltara a bater, como se a máscara de monstro caísse e voltasse a ser o homem belo e apaixonado que faria qualquer coisa para ouvir aquela voz pelo resto da vida. James adentrou a sala e viu Anne deitada no sofá com um homem na sua frente segurando um monte de panos. Ele ignorou completamente o homem e dirigiu toda a sua atenção àquela figura frágil, que mesmo muito mais pálida, magra e gasta, ainda transbordava a beleza pela qual apaixonara-se na primeira vez que se viram quando eram crianças. “Os dois me abandonaram...” Anne continuava a repetir. James caminhou até ela.
Anne pareceu tornar a si novamente, um brilho fraco surgiu em seus olhos. Enxergou através da carne, dos tecidos e dos ossos, ela viu o homem que amava naquela criatura em pé ao seu lado. Seus olhos se encheram de lágrimas e seu coração voltou a bater quente e suavemente como há muito tempo não batia. Ela ergueu as mãos e James se abaixou com um pouco de receio dela rejeitar a sua aparência grotesca. Ela tocou seu rosto naturalmente, como sempre fazia, seus olhos espantavam qualquer perturbação que James sentira até ali. Anne puxou o rosto de James para mais perto como se quisesse dizer algo, ele se aproximou e pode ouvir a fraca e quase inexistente respiração da sua esposa.
- Me desculpe, querido. Nós não pudemos esperar por você... nós não tivemos forças para continuar ao seu lado... - suas palavras saíram num suspiro depois de muito esforço.
- Não dia isso, querida. Eu cheguei, eu estou aqui com você. Mesmo sendo um monstro, ainda te amo do fundo da minha alma – disse James começando a ficar preocupado.
- Ele... me deu forças para continuar viva... mas o que ele me deu foi tomado dele... Eu sinto muito... se eu fosse mais forte... viveríamos os três juntos para sempre... - Anne parecia cada vez mais fraca.
- Nós três? Não estou entendendo, querida. Não fale mais, você está exausta... - o único olho de James começava a se encher de água como se já pressentisse o que estava por vir.
- Eu... te... amo. Disse Anne por fim. Seu corpo se congelou numa pintura que perduraria décadas sem perder o fascínio que nos passava.
James não disse nada, não se mexeu, fechou-se em si. Thomas só podia ficar parado assistindo a tudo ainda segurando a criança que nascera morta enrolada em mantos. A noite lá fora parecia perturbada, com ventos que uivavam pela porta ainda aberta e as copas das árvores balançando inconsoláveis de um lado para o outro. Thomas permaneceu imóvel olhando para a figura que uma vez foi o belo e alegra rapaz que atropelara.
James voltou a si, abriu os olhos mas continuava com o olhar profundo de quem está solucionando algum problema ou tentando entender algo que foi dito.
- Então era isso. Eu teria um filho, você seria mãe. Mas eu matei um filho, eu matei uma mãe. É culpa minha, o preço foi cobrado agora. Me perdoe, querida. Eu sou um monstro mesmo no fim das contas. Por minha culpa, vocês foram colocados no outro prato para equilibrar a balança. James falava como se o problema fora solucionado enfim.
“A culpa é toda minha, vocês não mereciam pagar pela minha dívida.” Disse James antes de começar a chorar, um choro de pesar que fez Thomas lembrar da esposa que acabara de falecer. James olhou para o embrulho que Thomas tinha nos braços. “Me perdoe, meu filho.” Foi a última coisa que disse.
James lentamente pôs a mão no bolso do casaco, sentiu a frieza familiar da tesoura, sua textura lisa, seu peso... seu peso. O peso para trazer o equilíbrio.
- Me perdoem. Mais uma vez, a balança precisa de um contrapeso para manter o equilíbrio. Estou em dívida com vocês... - Então James retirou a tesoura do bolso, aconchegou seus dedos para ficarem firmes e seguros. Thomas entrou em pânico ao ver a tesoura com manchas vermelhas por sua superfície, só então reparou que James estava com as mãos e o rosto sujos de sangue, seu corpo tremeu instintivamente.
- Senhor, não faça isso, solte essa tesoura! Thomas gaguejou para James.
Mas James pareceu não ouvir mais nada a sua volta. Seus movimentos era lentos mas precisos, levantou a cabeça, olhando através do telhado, parecia ver Anne e seu filho assistindo a tudo acima das nuvens. Dirigiu a ponda da tesoura à sua garganta. Thomas permanecia paralisado assistindo àquilo.
Através do vento que urrava porta adentro, pôde-se ouvir cascos de cavalos pelo caminho que trazia à casa de James e Anne, “o casal Winter Hill”. Ouviu-se de fora vir o grito do senhor Winnfild e do Dr. Gibson. James permanecia na posição, não escutava mais nada, fechou os olhos.
Quando o som dos passos apressados no assoalho da casa ecoaram pela sala, James continuou o trajeto da tesoura, os homens entraram apressados na sala. Ouviu-se apenas o som de um corpo caindo no chão.


Música para ouvir: The Kiss – The Last of the Mohicans Theme (sugestão da namorada ^^)
Isso é tudo, pessoal! hauhauuha

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Post comemorativo para o Autor

Apareci para dar os meus agradecimentos ao pessoal que lê essas tranqueiras que eu escrevo e que me incentiva e me ajuda com os constantes bloqueios. ^^

Um obrigado à Alê, que fica inventando umas teorias loucas sobre as histórias... haja falta do que fazer pra imaginar essas coisas ahuahuhauhuahau
Um obrigado ao Michael Godfather, que tem uma participação no processo criativo, com diversas teses filmográficas e debates níveis 12 sobre um vasto leque de tópicos cotidianos
E um obrigado à pessoa que me incentivou a criar o blog para começar, está sempre ao meu lado me auxiliando e pegando no meu pé para eu escrever logo, a minha fã que vai me apoiar e defender mesmo que eu tenha escrito algo muito ruim, a pessoa com quem eu faço 9 meses de namoro hoje, senhoras e senhores... À minha Pregricinha (isso mesmo, este é o apelido carinhoso xD e eu sou o Pregricinho) Bianca, que não gosta de ser chamada de Bibi huahuahuahu (eu a chamava assim quando nos conhecemos, puta vacilo)

É isso aí galera, fiquem aí com um desenho comemorativo pelo final do conto xD até a próxima!!

sábado, 16 de julho de 2011

Uma Noite no Bar - Parte Final - W. Munny


O som dos aplausos ressoava por todo o bar. A atmosfera ficou mais pesada do que eu podia imaginar que seria possível depois de tudo o que aconteceu. Eu tentei olhar para os outros no bar, mas não consegui tirar meus olhos da porta, e algo me dava a certeza de que os outros sentiam o mesmo.
Os aplausos cessaram. Estava muito escuro lá fora, e a chuva agora caia forte e incessante. A porta se abriu e um homem vestido de branco entrou. Ele usava um terno que me parecia ser feito sob medida e uma gravata preta, seus sapatos pretos cintilaram logo que entraram no lugar. Ele era loiro e seu rosto parecia saído de uma obra renascentista. Devo dizer que várias coisas me deixaram extremamente abismado com aquele cara, primeiro, ele entrou aplaudindo no bar, segundo, ele pareceu não notar um homem morto com um tiro na cabeça na sua frente, além da bagunça de sangue e miolos por toda a entrada e do cheiro de pólvora e sangue que infestava o lugar, e por último e o mais intrigante, ele não estava molhado.
O céu estava caindo do lado de fora do bar, as gotas agrediam violentamente a frente do bar, não havia como alguém entrar pela frente do bar e não se molhar, entretanto o homem estava impecável. Ele caminhou até o balcão como se estivesse sozinho ali, sentou em uma das cadeiras, olhou para o barman boquiaberto e, com uma voz agradável e macia, disse sorrindo “Whisky, por favor.” Depois de relutar um pouco, o barman o serviu em silêncio. O homem provou o whisky apreciando-o e pousou sutilmente o copo na bancada.
Por um momento, o tempo pareceu congelar, nenhum movimento era percebido lá dentro, e o barulho da chuva era tão distante, quase nenhum. O homem provou novamente a bebida e se virou de costas para o bar. Agora estava olhando para nós, com o seu sorriso que transparecia paz e harmonia. “Por que o silêncio, alguém morreu?” ele disse antes de cair na gargalhada, de alguma maneira, apesar de extremamente mórbido tivesse sido o comentário, aquilo quebrou a tensão. O motoqueiro vacilou “Quem é você? Não percebeu os caras mortos nas cadeiras aí na frente?” o homem o encarou e disse “Ah, sim. Claro que vi estes cavalheiros aí na frente. Mas receio que esteja apenas metade certo. O Danny boy aí do seu lado só desmaiou.” O barman vacilou com o comentário e o homem percebeu, virou-se e disse “Você nunca tentou ler a mente de alguém desmaiado, não é Henrique? Hahaha.” Então o mendigo, que pensávamos ter morrido, e que o homem chamou de Danny, levantou a cabeça de uma vez respirando loucamente e olhando para os lados e falando “Onde? Para onde a Jessie foi?” Ele percebeu o homem de branco olhando para ele e se arrumou na cadeira um pouco menos aflito.
O susto foi muito grande para uma recuperação rápida, então ficamos imóveis até o homem retomar de onde parou “Me desculpe, você me perguntou quem eu sou, não? Bem, na verdade eu sou um anjo.” A seriedade no rosto do homem indicava que não era mais alguma brincadeira macabra dele. “VOCÊ É O DEMÔNIO!!” gritou o mendigo, saltando da sua cadeira e correndo para a parede afastando-se do homem. Este, com uma expressão agora de tristeza e desanimação disse “Eu odeio esse nome. Meu pai me chamou Lúcifer, e prefiro ser chamado assim.”
Embora eu estivesse sentado, minhas pernas amoleceram num grau que imaginei elas soltando do meu corpo. Ninguém disse nada por um tempo, sinceramente eu não fazia ideia alguma de o que fazer, não tinha certeza se acreditava que aquele homem era o demônio, mas ele com certeza não era uma pessoa normal. O mendigo Danny permaneceu imóvel, encolhido em um canto do bar, o motoqueiro não tirava os olhos do homem de branco sentado de costas para o balcão, segurando um copo de whisky e vislumbrando calmamente o corpo do pastor que acabara de meter uma bala na própria cabeça. O barman continuou atrás do balcão, olhando fixamente para o homem, alguma coisa me dizia que ele tinha certeza sobre o quê o homem de banco era, lembro deste ter dito algo sobre o barman poder ler mentes. “Danny, Danny, Danny... Gostou da brincadeirinha que eu fiz com você?”disse o suposto demônio através de um meio sorriso olhando para o mendigo.
O mendigo arregalou os olhos mais que eu imaginei possível para um ser humano, talvez seu estado de quase inanição facilitasse aquilo. “Foi VOCÊ! Foi você quem fez Jessie aparecer na minha frente!” disse o mendigo apontando com uma mão trêmula. O homem aumentou o sorriso e respondeu “Bem, na verdade, ela só me pediu para aparecer. Desde que ela chegou, sempre quis aparecer para te rever. Ela ficou mesmo brava depois que descobriu algumas coisas...” terminou com um aceno de cabeça como se incitasse o homem a voltar no tempo e desenterrar algumas memórias reprimidas. Danny pareceu confuso, mas no fundo ele deixava transparecer que estava escondendo algo.
O motoqueiro se recompôs e interrompeu “O quê está acontecendo aqui? Você é mesmo o dem... você é Lúcifer?” perguntou meio receoso. O homem olhou para o motoqueiro “Bobby, eu já ia chegar em você, homem de pouca fé. Aliás, sinto muito pelo que aconteceu a Barbara, eu queria consolá-la, mas infelizmente ela não veio para mim” disse em um sorriso malicioso. Uma lágrima escorreu do rosto do motoqueiro enquanto ele olhava para o vazio. “Sabe, eu deveria me desculpar. Aquela noite, eu estava feliz com o aniversário de Barbara, estava realmente eufórico. Não imaginei que você fosse se entregar tão facilmente à euforia que compartilhei.” O rosto do motoqueiro ficou vermelho de cólera e ele avançou sobre o homem, mas após dois passos caiu de joelhos no chão, em lágrimas, com um olhar de derrotado no rosto. “Ah, não fique assim. Ambos sabemos que você pode superar isso. Hahaha” O Motoqueiro levantou o rosto com os olhos arregalados, ele parecia implorar por algo. Lúcifer (confesso que eu já estava praticamente convencido), pareceu se deliciar com o olhar do homem e continuou “Não venha me dizer que você não se sentiu bem dormindo com a sua vizinha dois dias após o enterro de Barbara. Para mim, você pareceu bem feliz quando urrava de prazer enquanto a sua vizinha tinha as pernas entrelaçadas ao seu redor.” O motoqueiro desabou de quatro no chão “NÃOOOOO!”
“DEMÔNIO MALDITO! Vá embora!!” gritou o mendigo. Lúcifer agora estava com uma expressão séria, seu tom de deboche se esvaíra. “Qual o problema, Danny? Tem medo de encarar o fato de que sua esposa o pegou em cima da sua secretária meses antes de você fazer o mesmo? Tem raiva por pensar que ela o perdoara mas fez o mesmo com você? Ou tem medo de admitir que está grato pelo empurrãozinho que lhe dei na noite que você a pegou com o seu sócio?” Lúcifer agora falava com um olhar que oscilava entre felicidade, prazer, fúria e sadismo. O mendigo olhava para os lados talvez procurando um meio de fugir daquilo. Eu pensei em fugir dali, mas não encontrei forças para fazê-lo, era como se algo me prendesse à cadeira e dissesse “Aguarde a sua vez, por favor.”
Me parece que o barman teve mais sorte (ou não) que eu. Ele desatou a correr para a porta dos fundos, mas antes de alcançá-las parou e virou-se para o imponente homem de branco que agora se servia de mais uma dose de whisky. “Por favor, Henrique. Não fica bem o dono do estabelecimento sair quando ainda tem clientes com sede.” Lúcifer parecia ter recobrado o tom brincalhão. “Talvez você não goste muito de histórias antigas? Mas devo dizer que este é mesmo o melhor whisky que já tomei, eu daria os meus parabéns ao velho Billy, mas foi realmente um terrível acidente, não?” O barman tremia e suava como louco. Lúcifer provou mais uma vez o whisky e ficou balançando o copo e olhando para o líquido que girava em uma redemoinho infindável, onde nossos sentimentos pairavam inertes e a mente se limpava como num transe tão atraente que não conseguimos escapar. “Mas, tem uma coisa que até hoje eu não compreendi...” disse Lúcifer, pensativo, ainda balançando o copo. “Por que o amarrar e abandonar no deserto?” O barman olhava desesperadamente para Lúcifer, parecia confuso de uma maneira diferente da dos outros dois. Ele parecia não compreender algo. “Ele queria me matar.” disse começando a chorar “Ele queria me matar. Ele achava que conseguia bloquear os pensamentos dele perto de mim, mas eu podia lê-los. Ele pretendia me matar e voltar para a tribo e iria falar que eu era um espírito ruim que tinha feito aquilo com ele... Billy estava ficando caduco.” Lúcifer acenou com a cabeça confirmando entender. “Então você o levou até o lugar em que ele o encontrou quando você era uma criança e o abandonou lá. Realmente, vocês sempre conseguem me surpreender.” Lúcifer olhou diretamente para mim pela primeira vez desde que entrou no bar.
Senti meu coração bater com uma força terrível, meu corpo permanecia completamente mole, eu só podia ficar ali e assistir o que acontecia. “Enfim chegamos em você, jovem Munny. E aí, o que achou?” disse Lúcifer olhando-me como uma criança que pede para o pai avaliar o desenho que ela acabara de fazer. Eu não soube o que dizer naquela hora, o demônio estava me perguntando sobre o que eu achava dele ter bagunçado com a mente de três pessoas, que tipo de resposta eu poderia dar? Me concentrei para não gaguejar e perguntei “Por acaso você planejou para que todos nós nos encontrássemos aqui esta noite?” Ele deu uma gargalhada, não esperava por isso. “Bom, quem sabe? Deus escreve certo por linhas tortas, não é mesmo? Quem garante que não tenha sido Ele?”
Por um tempo, só a chuva lá fora produzia algum som, eu refletia sobre o que ele disse quando continuou “Sabe, a eternidade realmente cansa. Acabei por aderir a um velho hobby de meu Pai. Vocês realmente não enjoam nunca, posso ter algumas desavenças com meu Pai, quem não tem? Mas admito que vocês são uma das melhores coisas que ele já inventou.” Ele parecia refletir, parecia estar distante, perdido em pensamentos.
“E o quê você quer de mim, afinal?” perguntei meio receoso de obter a resposta. Ele divagou mais uns instantes quando tornou a me olhar. “Ora, quando uma brincadeira acaba, inicia-se outra, não é?” ele me respondeu com o sorriso debochado no rosto. Os três homens caíram no chão simultaneamente, não emitiram som algum além do baque seco dos seus corpos contra a madeira velha do assoalho do bar. Uma gota de suor gelada correu da minha testa até o meu peito, aquelas palavras me encheram de pavor mais que qualquer coisa que acontecera aquela noite.
Lúcifer virou o whisky que restava em seu copo, levantou-se e caminhou para trás do balcão. “Acho que vou levar algumas garrafas para a viagem, quer mais um pouco?” ele disse. Eu não respondi, estava praticamente em estado de choque, tudo que conseguia fazer era ouvir e segui-lo com os olhos. Ele caminhou até a mesa e me serviu. “Era você a voz na cabeça do pastor? Você não deveria aparecer depois que ele bebeu?” eu perguntei, de algum modo, ele não parecia perigoso. Lúcifer gargalhou com força, parecia extremamente feliz. “Vocês realmente são seres interessantes. Bravo, Munny! Muito bem notado.” ele bateu palmas, e isso me arrepiou. “Eu disse que apareceria quando quatro gargantas estivessem saciadas, é verdade. Mas tem algo que nem você e nem ele, obviamente, perceberam. Ele estava sedento por vingança, e não há álcool no mundo que sacie este tipo de sede, você não concorda? Só depois que o barman bebeu, que as quatro gargantas foram saciadas.” ele me encarava como um jogador após fazer uma jogada sem saídas no xadrez.
A chuva do lado de fora do bar parecia diminuir. Lúcifer parou de me encarar e olhou para a porta. “Bem, acho que está na minha hora.” ele disse. Eu pude sentir o meu corpo novamente, mas não tinha forças o suficiente para levantar e sair correndo. “Espere! O que vai acontecer comigo?” eu perguntei. Ele me olhou despreocupadamente “Quem sabe? Tudo depende em você acreditar ou não no livre arbítrio.” Ele continuou a caminhar em direção a porta “Tenha um bom dia.”
Eu ouvi seus passos do lado de fora do bar e um tempo depois o silêncio era absoluto. Peguei o copo que ele me servira e virei de uma vez. Apesar de tudo, era um maldito de um whisky gostoso. Pude notar que fracos raios de sol entravam pelas frestas das paredes, parecia que não tinha passado de um horrível pesadelo. Me levantei e quando me virei para a porta vi o corpo do pastor que se matou, não foi um pesadelo. Não consegui mais aguentar e comecei a chorar. Chorava por tudo que acontecera, por ter saído vivo, por medo do que me aguardava. Depois de um tempo me recompus e andei para a saída.
Aquela foi a primeira vez que me encontrei com Lúcifer...

Música para ouvir: The End – The Doors

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Uma Noite no Bar - Parte 4 - Henrique Manson


Sabe, em geral, eu não tenho do que reclamar da minha vida. Eu até gosto de ser dono de bar, gosto de conhecer pessoas diferentes, então nada melhor que ter um bar para poder conhecer todo o tipo de pessoa que há no mundo. E, embora meu bar seja muito mal localizado, já conheci figuras no mínimo incomuns. Digo que não tenho do que reclamar da minha vida porque tudo que tenho foi me dado ou foi a minha única opção. Meus pais tinham um sítio a uns 50km daqui até que, certo dia, quando eu tinha 4 anos, um tornado destruiu a nossa casa e matou o meu pai. Minha mãe morreu tentando atravessar o deserto comigo e quase terminei na mesma situação se Billy não tivesse me encontrado. Billy, eu nunca soube seu verdadeiro nome, era um índio solitário que não tinha mais contato com a sua tribo e vivia nesse bar, que na época era a casa dele. Ele me adotou e me ensinou as duas únicas coisas que ele sabia, fazer whisky e ler mentes.
Creio que ele me ensinou bem, pois não tive um cliente que não, ao menos, pensasse “Esse é um maldito de um whisky gostoso”. Nunca bebi, mas posso ver o prazer que todos sentem depois de um gole. Quanto ao lance de ler mentes, Billy disse ter sido expulso de sua tribo por causa deste poder que ele tinha, de algum modo ele me ensinou como fazê-lo, ou talvez eu também fosse uma aberração como ele. Depois que Billy morreu, só me restava o lugar e o que aprendi com ele, não levei muito tempo para decidir transformar o casebre em um bar, foi um trabalho árduo abrir caminho até a estrada mais próxima, minhas costas ficaram doendo por semanas.
Eu segui a vida satisfatoriamente, até um cara todo maltratado entrar no meu bar. Sua mente era um poço de tristeza misturada com ódio e rancor, ele viu a esposa o traindo com o amante e matou os dois. Primeiramente fiquei meio receoso, mas ele também estava cheio de remorso, eu podia ver que ele nunca mais iria ferir alguém, então o servi normalmente, uma coisa que aprendi sobre poder ler mentes é que as pessoas não podem nunca suspeitar que você tenha esse poder, o velho Billy que o diga. Momentos depois entrou um motoqueiro, tão deprimido quanto o primeiro, mas esse se culpava pela morte da mulher, meu whisky parece ter melhorado o seu estado de espírito, a noite parecia estar melhorando até que um cara sem um braço entrou e afetou a todos no lugar. Na mente do cara eu só via a imagem da mulher e a filha mortas, e ficava soando repetidamente uma voz estranha na cabeça dele. Ele acreditava veemente que a voz era do demônio, não havia nada que pudesse convencê-lo do contrário, assim como ele parecia completamente convencido de que encontraria com o demônio esta noite no bar.
Tive de me esforçar para me manter calmo, até que entrou um último cliente, um cara completamente normal desta vez, não sei se fiquei aliviado ou com pena dele por acabar sendo arrastado para uma situação como esta. O cara normal também captou o clima pesado que havia se instalado no bar, mas seguiu para a mesa vazia restante e o servi. Ele tomou um gole e mais uma vez pude conferir a satisfação do cliente, aquilo sempre me deixava orgulhoso. Então o cara sem braço começou a pensar mais forte na voz que o assombrava, ficava repetindo “quando quatro gargantas estiverem saciadas, vai me encontrar” e enfim virou o copo que eu lhe tinha servido.
Ele contou a história dele e todos ficaram confusos, ele sacou a arma que carregava, o que trouxe uma extrema insegurança para todos, mas eu tinha certeza que ele não mataria ninguém que estava no bar sem ter certeza absoluta de que este era o demônio. Tive de fingir estar com medo quando me mandou ir até ele para servi-lo novamente. Começou interrogando o homem que matou a mulher e o amante, e com poucas mas convincentes palavras foi convencido. Ele passou para o motoqueiro, mas um fato foi percebido apenas por mim e, obviamente, o mendigo, o fantasma da sua mulher apareceu alertando-o de que veio para buscá-lo, que hoje ela conseguiria a sua vingança.
Eu tive de me concentrar para poder processar tudo o que acontecia naquele momento, um cara querendo matar o demônio, outro que matou a mulher e estava sendo assombrado pelo espírito dela, um motoqueiro que se culpava por ter matado a mulher e um cara azarado por ter vindo parar no meio disso.
O motoqueiro começou a chorar, ele ainda se sentia culpado pela morte de sua esposa mas, embora tenha passado todos os dias desde o acidente querendo morrer, estava agarrado a uma forte vontade de viver, no fim das contas estava com medo de morrer. O homem sem braço o encarou indiferente, sabia que aquilo não era o suficiente para ficar convencido. Depois de alguns segundos para se recompor, o motoqueiro olhou fixamente para o homem que apontava uma arma diretamente para ele e disse “Desde a morte de Barb, eu andei com a ideia da morte ao meu lado. Não houve um dia em que eu não cogitasse essa saída para o meu sofrimento, mas agora eu não consigo aceitar a morte... Me desculpe... Barb... Me desculpe, eu... eu não consigo.” Antes de terminar sua fala, ele já não olhava mais para o pastor, ele olhava para as lembranças da sua esposa Barbara que agora tomavam a sua mente, ele conversava consigo mesmo.
O pastor não entendeu completamente, mas sentiu que o demônio que perseguia não era aquele homem que, como ele, era perseguido por lembranças de pessoas que amava. A mente do pastor ficou confusa, ele já não tinha completa certeza sobre encontrar o demônio ali. Então a atenção passou toda para o cara que faltava, ele sabia que devia encontrar um meio de convencer o pastor de que não era o demônio, apesar do medo, sua mente procurava sempre se manter calma, seguindo linhas de raciocínios lógicas... O problema é que não há argumentação lógica em uma situação dessas.
Por mais que o homem pensasse, não encontrava um modo de convencer o pastor, provavelmente louco, armado e ficando perigosamente embriagado. Ele chegou a conclusão de que não havia um discurso que o inocentasse totalmente, então ele juntou a coragem restante e disse “Escute, amigo. Por mais desesperado que você esteja, deve lhe haver uma centelha de razão ainda. Eu não sou o demônio, sinto pela sua esposa e a sua filha, sinto mesmo, mas matar alguém aqui nesse bar hoje não vai trazê-las de volta.”
A pistola apontada para o homem estremeceu. O pastor agora tinha um olhar profundo novamente, ele já não tinha mais certeza de nada, já não sabia se tinha controle de si mesmo, se ainda podia pensar racionalmente. Foi então que ele olhou pra mim, não levantou a pistola, mas ficou me encarando.
“Eu sei que você não vai atirar em nenhum de nós, você já não está certo sobre a voz da sua cabeça. Apenas esqueça isso, você pode dormir em um quartinho que tenho ali nos fundos, deixe essa arma aí, descanse um pouco e reflita sobre tudo isso.” Eu tive de tomar muito cuidado para não dar a entender que eu tinha certeza sobre o que ele pensava, creio ter conseguido atuar corretamente. O pastor abaixou a cabeça e começou a chorar baixo. Os outros três sentiram-se aliviados quase que simultaneamente. “Marie... Beth... me perdoem... eu... eu não consegui...” Essas foram as últimas palavras do pastor. Antes de eu conseguir processar o que ele estava pensando ele levou a pistola até a boca e atirou.
Foi tudo muito rápido, mas os sons pareceram ecoar por alguns segundos no ar. O som da bala perfurar a sua nuca e voa pela porta afora pareceu nítido. Não fui o único a estremecer com o som do sangue e de fragmentos de ossos e cérebro atingindo o chão da varanda do bar e a terra do lado do fora, a porta ficou tingida com o escarlate vivo, quase que pulsante ainda. Todos nós ficamos paralisados, mesmo os marmanjos crescidos bebendo em um bar precisam de um tempo para se recuperar de um choque desse. Mas um de nós estava mais aflito que os demais, enquanto estávamos aliviados, ele parecia cada vez mais desesperado. O homem que matou a mulher e agora ela voltara para assombrá-lo, ele estava respirando freneticamente agora, entrei na mente dele e pude compartilhar do terror que passava.
O espírito da sua mulher agora o encarava furiosamente, caminhava lentamente até ele. Nada se passava na sua mente, apenas continuava olhando para a figura que caminhava lenta e pesadamente até ele. “Você não vai escapar, Dan! Hoje a vingança será feita! Hoje nos encontraremos!” dizia a mulher cada vez chegando mais perto do homem petrificado na cadeira. Os outros dois perceberam que ele parecia estranho, deixaram de olhar para o corpo do pastor e passaram a encará-lo. “Será que ele é o demônio” os dois pensaram, mas só eu sabia o que estava realmente acontecendo.
A mulher chegou até o homem e, ao tocar-lhe o pescoço, ele soltou um grito agudo fazendo o motoqueiro ao seu lado pular da cadeira. O homem se contorceu em agonia e abaixou a cabeça. Não pude ler a sua mente então soube que estava morto, provavelmente um ataque cardíaco.
O bar nunca ficou tão silencioso como desta vez, até que lá de fora pude ouvir sons aleatórios, eram pingos de chuva. Começaram poucos, espaçados, até que ficaram mais constantes, e o céu caiu no deserto.
Nenhum dos clientes restantes achou esquisito quando lhes servi outra dose. Eu sabia que eles estavam precisando de mais uns goles para enfrentar tudo aquilo. Depois de servi-los, voltei para trás do balcão, enchi um copo e virei de uma vez. O whisky desceu queimando tudo, mas eu relaxei quase que imediatamente.
Foi então que ouvi passos na varanda do bar, eu já não tinha mais cabeça para manter o bar aberto depois de tudo aquilo, estava pensando seriamente em vender o lugar e fugir dali. Ficamos quietos olhando para a porta agora vermelha, esperando o cliente que chegou atrasado para a festa.
Os passos se aproximavam e foi claramente audível a todos que quem se aproximava do bar estava batendo palmas despreocupadamente...

Música para ouvir: Evil Woman – Black Sabbath

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Pausa temporária para acumular material

Caso não tenha se deixado enganar pelo título pomposo, sim, bloqueio é uma vadia. Enquanto me preparo para desenvolver a reta final do meu primeiro conto grande que saiu do papel (uhuuu), venho aqui para escrever algo e não esfriar a cachola.
Não sei quanto aos outros, mas acho que as ideias e a criatividade fluem melhor quando há uma perturbação na força (hahaha hoje estou terrível).
Só sei que funciono melhor quando estou cheio de dúvidas, pra baixo... quando não estou legal. O que é um problema porque começo a pensar mais e mais, tenho tantas ideias que acabo me animando e voltando ao ócio criativo.
Então antes que o raio de negatividade se extirpe, compartilho algum resquício êxtase criativo:

As palavras moem o estômago num soco de fúria
Quando não se estava pronto para a reflexão.
Fadado a encarar seu interior,
Derrotado pela própria compaixão,
Porque sabe que errou ao acertar,
Sabe que errou por não tentar.
Viveu sem outrem ao menos semelhante
Não faz parte deles,
Um estranho errante.
Afoga-se em seus próprios lamentos.
É areia movediça de si.
Em cavernas sem entrada vaga
Esperando que o tempo
Lhe construa uma saída.


Música para ouvir: Hurt - Johnny Cash

sábado, 4 de junho de 2011

Uma Noite no Bar - Parte 3 - Daniel Smith

Eu era rico meses atrás... Eu era dono de uma grande transportadora no meu estado, tinha poder, uma família, minha vida estava completa. Até que o pior aconteceu.
Eu cheguei em casa, uma mansão que tinha comprado a 7 quilômetros da praia, estava me sentindo ótimo, tinha fechado negócio com um importante cliente, podia prever a minha aposentadoria chegando. Quando entrei, notei que as luzes estavam apagadas, pensei que Jessie provavelmente estava tomando banho na nossa suíte, aproveitei para fazê-la uma surpresa quando ela saísse do banheiro. Fui à cozinha, peguei uma garrafa de champanhe que meu sócio, Steve Gacy, havia me dado de presente no meu aniversário fazia poucas semanas, e fui até o nosso quarto fantasiando não só a promissora noite que teríamos mas o resto das nossas vidas agora que dinheiro não seria mais problema e poderia me dedicar completamente à Jess.
Chegando ao quarto vi a porta fechada e uma luz fraca saindo por baixo dela. Meu corpo estremeceu de excitação, eu estava louco para possuir seu corpo macio e perfeito. Abri a porta devagar para que pudesse surpreendê-la mesmo que já tivesse terminado o banho e estivesse se vestindo, seria até mais excitante – eu pensei. Meu peito ainda se remói de ódio quando relembro a cena, mesmo quando não quero relembrar, as imagens de Steve em cima de Jess, penetrando-a com ímpeto, ofegante, e Jess com as pernas ora esticadas para o alto, ora flexionadas, contorcendo-se de prazer, gemendo loucamente... Os dois estavam em tamanho êxtase que nem notaram a minha presença. Oh Deus... Os segundos que se passaram enquanto eu processava aquilo tudo foram eternos, como se cada segundo fosse uma gota caindo no fundo de uma caverna, ecoando na minha alma. Entretanto eu preferiria a eternidade naquela situação à reação que tive diante daquilo.
Meu corpo agiu quase que espontaneamente, mas eu sabia que queria fazer aquilo. Corri até a cama e acertei Steve na cabeça com a garrafa de champanhe, ele caiu por cima de Jessie descordado e ela abriu os olhos ainda sem entender o que estava acontecendo. Eu estava em pé em cima da cama e ela me viu, eu olhei nos olhos dela sem demonstrar a mínima reação. Jessie tentou se desvencilhar de Steve – creio que pensando em alguma maneira de explicar que não era a vadia que estava gemendo como uma cadela, seria até engraçado vê-la tentar – mas eu pisei nas costas de Steve, fazendo peso e impedindo-a de se mover, e acertei a cabeça dele mais uma vez com a garrafa, desta vez ela se quebrou fazendo uma mistura de champanhe com sangue em cima de Jessie e pela cama. Ela ficou imóvel, me olhando apavorada. Deus me perdoe, mas eu estava me sentindo ótimo fazendo aquilo, me sentia completamente vivo, meu sangue fervia como nunca fervera antes. Eu diminuí a pressão nas costas de Steve e Jessie mudou a expressão, como se estivesse perguntando se agora tinha permissão para se mover ou se explicar, eu permaneci indiferente, olhando-a nos olhos apreciando o seu medo. Ela tentou sair da posição, seus olhos arregalados e a sua respiração desesperada, procurando uma forma de explicar o porquê de ainda estar com Steve dentro dela, tentei não rir quando imaginei perguntá-la se agora ela era necrófila. Quando estava conseguindo sair debaixo dele, eu chutei-a no rosto com toda a força e ódio que eu tinha no momento, senti dentes quebrarem dentro da sua boca pela ponta do meu sapato. Ela gritou de dor e tentou fugir, mas a peguei pelo cabelo e enfiei o pedaço da garrafa que estava segurando no seu pescoço, o sangue espirrou longe e eu a assisti gorgolejar até a morte. Quando tudo acabou eu comecei a rir, dei altas gargalhadas, olhei para o corpo de Steve e disse “O condenado comprou a própria corda! Hahahaha”.
Creio que levou alguns minutos para eu voltar ao normal, voltar a pensar, a temer. Saí correndo de lá, não mexi em nada, não peguei nada, apenas saí correndo de lá, fui até o meu carro e abri o porta -malas, eu sempre guardava uma muda de roupas lá já que era comum ter de viajar de última hora para alguma reunião. Me troquei e fugi dali, peguei um ônibus para outro estado e abandonei a sociedade, me tornei um mendigo, foi a única coisa que pude pensar em fazer para que não me encontrassem.
Vaguei pelo país por meses, até que vim para nesse bar esta noite. Com algum maluco armado achando que o demônio está no bar.
Talvez pela minha aparência agora, magro – esquelético, na verdade – e mal vestido, ele voltou a sua atenção para mim, ficou me olhando fixamente, os outros caras no bar olharam para mim também.
-Eu não sei se você vai me entender ou sair atirando para todos os lados mas, eu não sou o demônio, e disse. Eu sou apenas um mendigo prestes a morrer, seria até um favor que você me faria se me matasse agora, mas eu não sou o demônio.
Ele fraquejou, seu olhar voltou-se para dentro de si e então ficou imóvel por um tempo. O motoqueiro ao meu lado e o outro cara, mas distante do outro lado, pareceram ficar mais aliviados, meus músculos também se afrouxaram e me senti mais leve. Então o homem começou a falar:
-Ele tomou a minha esposa e a minha filha, arruinou a minha vida – pôs a mão no bolso e tirou uma bala, carregou o revólver e o destravou – não me resta mais nada senão a vingança, e hoje é o dia.
O homem apontou o revólver para cada um de nós, analisando a nossa expressão, provavelmente esperando alguém começar a falar uma língua desconhecida com uma voz gutural, e continuou “eu só tenho uma única bala, e o destino dela será escolhido essa noite”.
Ele pôs a arma na mesa, pegou a garrafa que o barman deixara conforme tivera ordenado e encheu o seu copo. Virou de uma vez, pegou a arma apontando para o motoqueiro e disse:
-Você, fale!
Meu corpo sofreu, uma onda de alívio. Apesar de tudo, ainda queria viver. Foi então que, numa fração de segundo, vi Jess atrás do homem sem braço, ela me encarava e ouvi a sua voz na minha cabeça “Hoje a vingança será feita, Dan. Hoje nos encontraremos.”. Eu congelei, olhei para o homem, ele encarava o motoqueiro, voltei os olhos para onde Jessie tinha aparecido e ela permanecia lá, me encarando, esboçando um suave, quase imperceptível, sorriso.
Senti meu coração bater descontrolado agora, tentei ao máximo não transparecer a minha tensão dadas as circunstâncias. O motoqueiro começou a chorar...
Música para ouvir: Hey Joe – Jimi Hendrix

sábado, 21 de maio de 2011

Uma Noite no Bar - Parte 2 - Bob Wilson

Meu nome é Bob Wilson, tenho 53 anos. Na verdade eu fiz aniversário há uma semana, foi quando decidi sair da cidade e viajar um pouco. Poucas coisas me seguravam àquele lugar estressante e caótico. Depois que compraram a minha loja, a vida começou a valer à pena, éramos só eu e Barb, felizes... Barbara, como sinto a sua falta. Por mais que eu tente, por mais que eu beba, não consigo parar de pensar que sou o culpado por você não estar aqui hoje.

De qualquer forma, após o meu aniversário, decidi vender a casa e todo o resto – menos a moto, consegui recuperá-la - e sair pelo mundo, sem destino, procurando por paz de espírito, por uma maneira de fazer com que essa dor vá embora. Por uma semana eu andei pelo país, sem saber para onde ir e sem ter preocupação de quando irei chegar, até que encontrei o que parecia ser uma trilha paralela a poucos metros da estrada, alguma coisa me fez seguir o caminho que aos poucos foi se distanciando da estrada até não ser possível mais vê-la. Resolvi seguir em frente à procura de algum posto de gasolina ou uma rodovia e acabei encontrando esse bar, estacionei a moto atrás dele, mais um dos costumes que herdei do meu tio, como ascender cigarros com palitos fósforo e beber antes de comer.

Quando entrei no bar, vi um cara magro quase anêmico sentado perto do balcão tomando o que farejei ser whisky, andei até a mesa ao lado e me sentei, como ele, de frente para a porta. Segundos depois saiu um homem do banheiro, ele olhou para mim e não disse nada, foi para trás do balcão pegou uma garrafa e um copo, veio até mim e me serviu. Antes de pedir uma cerveja ele já falou, “Só temos whisky aqui, amigo. A placa dizendo isso deve ter caído de novo”. Dei uma tragada e todo o desejo da cevada se foi, nunca tinha provado uma bebida como aquela. Aquilo realmente começou a limpar a minha mente, pensei que enfim conseguiria esquecer o acidente, a dor... Me bateu uma profunda melancolia, mas eu me sentia extremamente bem, como não tinha me sentido desde a morte de Barbara. O silêncio no bar, a pouca luz quase imperceptível lá fora, tudo relaxava... me senti como se pudesse esquecer tudo e morrer em paz.

Eu estava no terceiro copo quando me subiu um calafrio na espinha, pude ver o whisky vibrar dentro do copo, era a minha mão tremendo. Eu olhei para o cara sentado a mesa ao lado e a sua expressão me dizia que eu não era o único a me sentir assim. Pude ouvir passos fora do bar e depois passou pela porta um sujeito com uma barba menor que a minha e sem um braço, seus olhos estavam fundos e vazios, algo me disse que a sensação que eu e o meu vizinho sentimos viera dele. Ele caminhou e sentou a mesa seguinte, ao lado do meu desnutrido e silencioso companheiro de bebedeira. O barman foi até ele e fez o mesmo procedimento que fizera comigo, o homem não protestou, talvez quisesse mesmo whisky, ou nem tivesse percebido que o serviram, de qualquer forma ele não tocou no copo e permaneceu calado.

O clima ficou pesado durante uns dois minutos, eu estava pensando em pagar e sair dali quando ouvi o som de um carro se aproximando, normalmente isso não seria nenhum acontecimento extraordinário, mas simplesmente não consegui levantar, o clima ficou mais pesado ainda, não sei o porquê, mas o homem sem braço pareceu voltar à realidade. Segundos depois entrou um homem, eu não olhei para ele, continuei inclinado olhando para o meu copo, ele ficou em pé, parado na porta até que o barman perguntou se ele queria sentar, ele foi até a última mesa e se sentou, foi servido e o barman disse algo a ele que não consegui ouvir, na certa foi algo sobre só servir whisky. O homem tomou um trago e eu já tinha me recomposto, pronto para me levantar, pagar e dar o fora dali quando o homem sem braço pegou o copo e virou de uma vez, bateu o como na mesa e começou a contar uma história sobre ele ter sido um pastor que perdeu a mulher e a filha, e ouvia uma voz estranha.

Isto me fez relembrar daquela noite... Eu tinha saído com Barb para comemorar o aniversário dela, eu nem tinha bebido muito por isso fui dirigindo e ela na garupa, rindo, alegre... A noite estava perfeita, o céu estava limpo, estrelado, Barb agora se agarrava a mim, com o rosto apoiado sobre as minhas costas, estava tão quieta que pensei que tinha dormido. Estávamos chegando em casa, quando senti uma vontade latente, quase insana de acelerar, dar um susto na aniversariante para ela ficar bem acordada para o resto da nossa noite. Eu acelerei e ela soltou um grito de susto, eu ri e ela se acalmou, mas eu continuava com vontade de correr, e comecei a acelerar mais, “Bob, pare!” disse Barb enquanto eu acelerava cada vez mais, “Hahaha está com medo dorminh...” eu não pude terminar a frase. Avancei a 120km/h em um cruzamento e só vi a lateral de um ônibus, desesperadamente tentei virar mas era tarde. Por ter tentado virar, Barb não conseguiu se segurar e foi arremessada contra o ônibus, ela morreu na hora, eu bati na traseira do ônibus e acordei 37 dias depois, preferiria ter continuado dormindo...

Parei de relembrar quase ao mesmo tempo em que o homem parou de falar, parece que ele achava que um de nós era o demônio. Ele andou até a porta com uma cadeira, se sentou e sacou uma arma e colocou em cima da perna e pediu mais whisky... O barman fez o que ele ordenou e voltou para trás do bar sem acreditar no que estava acontecendo. O homem tomou um trago olhou para cada um de nós e falou que estava esperando.

Eu não consegui engolir tudo que estava acontecendo, mas senti uma forte vontade de viver...

Música para ouvir: Changes – Black Sabbath