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segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O Casal Winter Hill



James Winnfild chegara na pequena cidade de Winter Hill quando tinha dez anos, seu pai decidira abrir um pequeno mercado ali depois de ganhar uma grande quantia de herança de uma tia por parte de pai. Anne White nascera e crescera em Winter Hill, sua família está lá desde os seus bisavós, que se mudaram para lá no mesmo ano da fundação da cidade e entraram no ramo da sapataria desde então.
No seu primeiro dia em Winter Hill, James caminhava pela calçada das pequenas lojas que seriam vizinhas do grande mercado que seu pai iria criar usando o espaço de três lojas. James seguia em frente olhando para a rua, vendo as carroças passarem mais apressadas do que deveriam. Chegando à esquina, já ia avançando para a rua quando Anne o puxou de volta pouco antes de uma carroça passar rente à calçada. A carroça estava tão rápida que arremessou uma onda de lama nos dois sentados na calçada que se olhavam com olhos arregalados. James tirou do bolso do seu casaco um lenço, aprendera com seu pai a sempre carregar um lenço consigo, e ofereceu a Anne como forma de agradecer por ter-lhe salvo a vida. Anne abriu um sorriso largo, pegou o lenço e limpou o rosto de James ao invés do seu próprio. Naquele momento, James, mesmo com seus dez anos e oito meses de idade, soube que estava apaixonado, e queria passar o resto da vida com a menina na sua frente.
O tempo provou que a paixonite infantil amadureceu e se tornou amor verdadeiro. James e Anne eram frequentemente referidos como “o casal Winter Hill” e ambos apenas se olhavam e riam felizes ao ouvir seu apelido. E foi no inverno do ano seguinte ao da morte dos pais de Anne, fato que abalou o casal com a mesma força, que James a pediu em casamento, quando ambos tinham 23 anos. Os pais de James acharam a decisão muito precoce, muito embora soubessem que os dois já estavam decididos daquilo antes de informá-los, e pediram para que o casal noivasse por dois anos, quando James assumiria o mercado do pai. James e Anne aceitaram a proposta de bom grado, afinal eles praticamente já viviam como casados, o casamento seria apenas uma oficialização.
Um ano se passou e decidiram viajar para o litoral, onde passaram duas semanas em um pequeno chalé em uma montanha perto do mar. No último dia antes de voltarem, James preparou uma festa surpresa para Anne. Eles casaram no alto da montanha, vislumbrando o mar. Os pais de James relutaram quando souberam, mas, no fundo, sabiam que algo como aquilo poderia acontecer, qualquer um podia ver o amor transbordar dos dois quando estavam juntos.
O casal Winter Hill vivia feliz em uma casa, perto de um bosque saindo da cidade, construída pelo pai de James como presente de casamento, James assumira o negócio do pai e já planejava abrir outro mercado em uma cidade vizinha, quando o casal trouxe a notícia que toda a cidade esperava, Anne estava grávida. O casal agora parecia mais feliz que nunca.
Cinco meses se passaram. Certo dia, num fim de tarde, James saíra mais cedo do mercado pois queria chegar logo em casa e preparar o jantar para Anne, que reclamava estar bem e podia fazer essas simples tarefas, mas ele nunca dava ouvidos. James decidiu voltar a pé para casa, chovera pela manhã, mas o sol dominou todo o resto da tarde e nada melhor que uma caminhada para abrir o apetite, James estava ciente de sua pouca habilidade culinária embora Anne nunca reclamasse e quase sempre repetisse os pratos que ele fazia. Na metade do caminho, lembrou-se que precisava de cenouras, planejava fazer um ensopado de carne e Anne adorava cenouras. Voltou agora um pouco apressado, queria chegar logo em casa e ver o doce e caloroso sorriso de sua esposa.
James avançou a rua sem estar ciente disso, do mesmo modo que fizera no dia em que encontrara Anne, mas dessa vez ela não estava lá para salvá-lo. James deu três passos em direção a outra calçada, perdido em pensamentos, quando uma carroça apressada, igual às que vira quando criança, veio em seu rumo tão rápido que nem ele nem o homem na carroça puderam fazer algo para evitar o que se seguiu. James foi atropelado pela carroça. O cavalo o derrubou e um dos seus cascos o acertou no rosto, em seguida uma roda da carroça novamente o atingiu no rosto. A carroça virou e espalhou pela rua as abóboras que o homem transportava. O homem escapou com apenas um leve arranhão no ombro esquerdo e uma dor no braço esquerdo. Ele se levantou e correu em direção do transeunte que acabara de atropelar. A lama quase seca pelo sol vespertino agora estava molhada, gerando pequenas poças escarlates que se enchiam com o sangue que corria do rosto de James, estirado no chão lamacento.
James foi levado às pressas ao hospital da cidade e Dr. Gibson conseguiu lhe salvar a vida, mas sofreu muitos danos na cabeça e não era possível saber quando iria acordar. O dono da carroça, que foi levado ao hospital também, após o relatório do médico, decidiu que ele mesmo deveria informar à esposa do enfermo o ocorrido, e o Dr. Gibson, que era amigo do pai de James achou que seria melhor deixar com o pai de James a função de contar à Anne sobre a tragédia. O médico enviou um criado à casa dos Winnfild, e poucas horas depois, Anne apareceu no hospital, seu rosto estava vermelho e marcado de lágrimas, mas transpirava força e determinação para ir até o leito de James.
- Senhora, me perdoe. Meu nome é Thomas Jackson e... fui eu... quem atropelou o seu marido. Disse o dono da carroça olhando para o chão. Anne acertou-lhe um tapa no rosto e seguiu em direção ao quarto em que repousava James. Thomas sentiu a maçã do rosto queimar, mas permaneceu imóvel no branco corredor do hospital, desolado, frustrado, decepcionado consigo.
O Dr. Gibson já previa a vinda de Anne e a convenceu a não entrar no quarto. Alertou-a dos danos sofridos no rosto do marido e que ela deveria esperar que eles pudessem, agora que estabilizaram o estado de James, tentar recuperar o seu rosto. Anne encontrou todas as forças que lhe restavam para permanecer consciente, ela não se permitiria desmaiar, e permaneceu sentada ao lado da porta do quarto até que o pai de James apareceu para levá-la para casa, o médico disse que não seria bom para a gravidez dela que passasse por tamanha tensão.
Saindo do hospital com o auxílio do sogro, Anne parou na porta. O pai de James logo entendeu e não a forçou a continuar andando. Thomas estava do lado de fora do hospital, com duas crianças o puxando um por cada braço. “Papai, o senhor está bem? Nós conseguimos recuperar algumas abóboras.” Disse o menino. A menina parecia ainda estar se recuperando do susto e continuava a enxugar as lágrimas que não paravam de cair. Anne que primeiro sentira ódio do homem, agora já não tinha certeza sobre o que acreditar, se sentia muito fraca, pediu para o sogro levá-la para casa. Ela precisou apenas encostar o rosto no travesseiro para dormir profundamente.
Anne acordou no dia seguinte com alguém batendo à porta. Imaginou ser James que fora comprar pães frescos para o café da manhã e esquecera a chave da porta, enfim tudo não passara de um terrível pesadelo. Ela disparou até a porta, arrumando-se como podia, tentando limpar as manchas das lágrimas que correram a noite toda enquanto dormia. Ao abrir a porta, o baque veio todo de uma vez junto com o vento frio que adentrou em casa. Não era James que estava na porta com pães frescos na mão e um largo sorriso no rosto dizendo estar frustrado por ter esquecido a chave e não conseguir surpreendê-la com um café da manhã na cama. Era Thomas quem estava à porta, com um chapéu surrado em mãos, “Bom dia, senhora Winnfild. Sei que a senhora tem todos os motivos para não querer nem olhar para mim. Eu também não vim aqui pedir perdão, pois eu mesmo sei que não o mereço. Eu vim aqui para dizer à senhora que ajudarei no que for possível.” Anne o olhou impiedosamente, agradeceu por não ter mais lágrimas para chorar naquele momento, e fechou a porta. Thomas caminhou até a carroça, que escapou pouco avariada, e pegou uma grande abóbora que trouxera, Anne que espiava da janela viu novamente as duas crianças que puxavam o homem na noite anterior, o menino aparentava ter 8 anos enquanto a menina não deveria ter mais que 4. Thomas trouxe a abóbora até a entrada e bateu à porta novamente, as crianças olhavam atentas para o pai, então o coração de Anne amoleceu e ela abriu a porta. “São seus filhos?” perguntou Anne. “Sim senhora, o mais velho se chama Jack e a menina chama-se Rosalie” disse Thomas enquanto carregava a abóbora para a cozinha guiado por Anne. Thomas deixou a abóbora, acenou e ia embora quando Anne o chamou “Os seus filhos já tomaram café da manhã?” Thomas vacilou e respondeu que não, mas já estava a caminho do armazém, ia vender algumas abóboras e conseguir dinheiro para o café. Thomas já estava partindo quando Anne gritou, enquanto corria em direção à carroça “Espere! Isto é para as crianças.” e entregou uma cesta com quatro pães. As crianças arregalaram os olhos maravilhadas, o pai as ordenou que agradecessem e então partiram.
Os dias se arrastaram com Anne indo diariamente ao hospital na esperança de receber boas notícias, mas o estado de James permanecia o mesmo, e ela parecia ficar cada dia mais fraca e abatida. O Sr. Winnfild sugeriu que ela fosse morar com eles até que James acordasse, mas Anne se recusava, apesar de toda a tristeza, tinha esperanças de James acordar antes daquilo ser necessário.
Um dia, quando Anne retornava do hospital, ela percebeu a carroça de Thomas em frente à sua casa. Ele aparecera outras vezes para trazer algumas abóboras ou outras coisas necessárias no dia a dia que Anne pedia para que trouxesse quando fosse à cidade fazer compras. Apesar do que Thomas fizera ao seu marido, Anne já não lhe guardava mais rancor. Thomas estava em pé ao lado da carroça esperando enquanto seu casal de filhos corria nos fundos da casa perto do bosque. Por um momento Anne reparou a beleza de Thomas que passara despercebida em função da fúria e o ódio que tinha pelo homem antes, ele era alto, loiro, tinha um porte maior que o de James em função do trabalho pesado e olhos quentes e reconfortantes.
O peito de Anne deu uma pontada de dor pelo que ela pensou. Como poderia estar admirando a beleza do homem que pode ter causado a morte do seu marido? Ela vacilou por um instante mas continuou em frente quando ele a avistou.
- Desculpe-me por aparecer assim sem avisar - desculpou-se Thomas abrindo um sorriso constrangido e sincero.
- Não se preocupe com isso... Se tiver algum tempo posso arranjar algo para as crianças comerem - respondeu Anne, um pouco envergonhada com a intimidade que desenvolvera com o homem.
- Eu agradeço, mas só passei para deixar um pouco de carne que consegui na feira ontem e saber se a senhora queria uma carona para o hospital hoje.
- Eu acabei de voltar de lá. Mas o senhor não precisa negligenciar o seu trabalho para me levar à cidade, já está fazendo muito me trazendo essas coisas.
- Nunca farei algo que chegue perto de me redimir, mas estou indo ao hospital para visitar a minha esposa.
- Meu Deus, está tudo bem? Se me permite perguntar – Anne percebeu que Thomas não tinha mencionado a esposa desde então, ela nem sabia se ele era casado.
- Ela está muito doente, está muito fraca, o médico já fez diversos exames ainda não sabe do que se trata.
- Sinto muito por isso. Há quanto tempo ela está doente?
Thomas tremeu. Já não olhava mais nos olhos de Anne e pareceu receoso de responder. Anne ficou confusa com a sua reação, talvez o assunto o machucasse ou relembrar isso lhe tirasse as poucas esperanças que tinha.
- Ela está no hospital desde o dia que... eu... atropelei o Sr. James. Quando soube, fui correndo para o hospital e estava tão desesperado que não pude controlar a carroça quando o Sr. James entrou na minha frente. Me perdoe por isso, por favor...
Os olhos de Anne embaçaram com as lágrimas prontas para rolar por sua face, a conversa lhe trouxe tanto raiva quanto compaixão pelo homem na sua frente. Ela não disse mais nada, Thomas pareceu entender e a acompanhou em silêncio até a cozinha, onde ele deixou a carne e chamou as crianças para irem embora.
Naquela noite, Anne sentiu-se extremamente sozinha. Queria que as coisas pudessem voltar ao normal, que tudo fosse um horrível pesadelo. Já estava perdendo as esperanças, esperança em James acordar e esperança em continuar viva. Foi então que sentiu um chute na barriga. Seu bebê lhe dizia que não estava sozinha, que não importasse o que acontecesse, ela tinha um motivo para continuar vivendo. Após dias de tristeza e angústia, ela teve um motivo para chorar de felicidade.
A medida que os dias passavam, as esperanças esvaíam-se como uma fina areia que escapara pelas minúsculas brechas de uma mão fechada, e uma segunda mão se fechava sobre o coração de Anne, que se agarrava ao seu bebê para continuar vivendo. Dois meses se passaram desde o acidente de James, e Anne não era nem sombra da mulher de antigamente. A linda mulher com o sorriso quente e espontâneo que alegrava tudo ao seu redor agora estava esquelética, com olheiras negras e o lindo cabelo longo e brilhante que fora um dia agora estava despenteado, sem vida, assim como ela.
Um dia, no final da tarde, Anne estava recolhendo a roupa do varal quando sentiu uma forte pontada no ventre. Ela se assustou, a dor aguda que persistia em seu ventre lhe trazia de volta à vida, estava fraca e vacilou por um instante quase desmaiando. Estava sozinha em casa e Thomas não ficara de lhe trazer nada hoje, o medo começou a arranhar seu peito e o desespero subiu à garganta.
Foi quando ela ouviu o som que tornara-se familiar, os cascos do cavalo cavando a terra dura do caminho que trazia à sua casa, as rodas que rangiam preguiçosas, era a carroça de Thomas que estava a caminho, Anne suspirou aliviada, Thomas lhe trazia tamanha segurança que ela perdia qualquer medo e ansiedade quando estava com ele, e o som lhe informava que não havia mais o que temer, ele estava chegando.
Quando Thomas avistou a casa, rapidamente percebeu o corpo jogado no chão, não precisou pensar para saber que era Anne que estava caída e pulou da carroça e foi correndo até ela. Ela estava consciente, mas muito debilitada para ficar em pé. “O que aconteceu, Sra. Winnfild?” quase gritou com o susto. “Acho que o bebê vai nascer... acho que está na hora.” suspirou Anne refletindo na expressão as dores das contrações que sentia.
Thomas a levou para dentro e praguejou por ter vindo sozinho, ela não estava em condições de ser levada ao hospital, e não havia como pedir ajuda. Uma lágrima caiu sobre o rosto de Anne e ela percebeu que o homem, embora procurasse esconder isso e se focar na situação, estava terrivelmente desolado.
- Thomas... o que aconteceu? - Anne perguntou.
- Não é nada... a Sra. Não precisa se preocupar... eu... fiz o parto dos meus filhos. Eu posso... - Thomas não conseguiu terminar a fala e chorou sem se segurar.
Anne, mesmo debilitada e com muitas dores percebeu o que tinha acontecido.
- A sua esposa? Ela está bem?
- Não, senhora... Ela... Ela morreu há algumas horas. Eu estava no hospital até agora... Ela estava muito fraca e teve um crise respiratória... Não se preocupe, eu vou ajudar a senhora. Disse o homem em meio às lágrimas.
As dores estavam ficando mais fortes. Sofrendo com as dores e a fraqueza, Anne teve um pressentimento estranho que quase lhe passou despercebido, mas um frio na espinha lhe indicou que algo de ruim estava prestes a acontecer.
Ao mesmo tempo, no hospital, James abriu o olho direito. O Dr. Gibson estava trocando as suas ataduras com uma tesoura enorme e pontuda e ambos se assustaram com a situação.
- Onde está Anne? Quase gritou James, percebendo que havia algo errado com a sua fala, não sentia movimento no lado esquerdo da sua boca.
- Acalme-se, James. Você se lembra de mim? Sabe quem eu sou? Disse o médico procurando retomar a postura profissional e recuperar-se do susto.
- Dr. Gibson... Eu fui atropelado... Onde esta Anne? Disse James, parecendo tentar recuperar a última lembrança que teve.
- Ótimo! Me parece que o seu cérebro não sofreu danos relevantes. Não se preocupe agora, precisa ficar aqui para mais alguns exames e possivelmente amanhã poderá ir para casa. Mandarei alguém à casa de seus pais agora para avisar-lhes que acordou. Apenas descanse, daqui a pouco sua família virá te ver.
O Dr. Gibson colocou a grande tesoura no seu casaco e saiu do quarto.
James permaneceu quieto ainda tentando reorganizar seus pensamentos, mas estava com uma sensação estranha e pressentia algo ruim. Ele se levantou e caminhou até o pequeno banheiro do seu quarto. Foi lavar o rosto e sentiu um deformidade no seu lado esquerdo do rosto, percebeu que não estava enxergando bem também. Acendeu a luz do banheiro e olhou para o espelho.
O terror correu pela espinha de James, que defrontava pasmo seu novo rosto. Uma grossa camada de pele caía da sua testa e lhe cobria o olho esquerdo, sua maçã esquerda do rosto afundara e sua boca parecia ter sido derretida no lado esquerdo. Na verdade, parecia que lhe tinham jogado um ácido no lado esquerdo do rosto, nem mesmo tinha cabelo naquela área e ele parecia não ter mais a orelha esquerda e tinha um acúmulo de carne na frente do rosto que deveria ser o seu nariz antigamente. James começou a chorar, não queria acreditar que era aquela criatura refletida no espelho. Estava caindo na escuridão dentro de si quando uma brisa gelada lhe correu à nuca. Algo ruim estava para acontecer. “Anne!” ele disse antes de seguir para a porta do quarto.
O hospital estava totalmente silencioso, James sabia que não teria para sair, sabia que deveria sair sem que percebessem. Esgueirou-se até a sala do Dr. Gibson, que era o último obstáculo até a saída, e espiou para dentro da sala. O médico não estava lá, talvez tenha resolvido ir pessoalmente avisar as “boas novas”. Mas o seu casaco ainda estava lá, talvez tenha apenas ido ao banheiro, James sabia que não teria muito tempo se tivesse suposto corretamente, então rapidamente vestiu o casaco do Dr. Gibson e correu para fora do hospital.
Fora do prédio estava muito escuro, não se via pessoas na rua. James correu até sair do campo de visão do hospital e seguiu em um passo apressado para a sua casa. Seguia em silêncio, parecia ter reorganizado tudo que era importante de se lembrar, estava casado com Anne, morava em uma casa perto do bosque saindo da cidade, estava no lugar de seu pai nos negócios da família... e fora atropelado por uma carroça. A cena da carroça investindo furiosamente contra ele lhe quebrava por dentro, por mais que tentasse, não conseguia esquecer a singular dor dos cascos do cavalo entrando em atrito com a sua pele, não precisava se esforçar para lembrar da dor, quase sentir, da roda da carroça vindo na sua direção, a madeira amassando e rasgando a sua carne impiedosamente.
Ao virar uma esquina, James deu de frente com um menino que corria despreocupadamente, isso o fez lembrar do acidente novamente. O menino se levantou e olhou James no rosto para se desculpar, mas nenhum pedido de desculpas saiu da sua boca, que ficou paralisada e trêmula por um minuto, o que saiu de sua boca foi apenas um grito de pavor. James não sabia o que fazer para acalmar o menino que chorava sem parar até que uma mulher que deveria ser a mãe do menino apareceu.
- O que acontec... Oh Meu Deus!!! - gritou a mulher encarando James com o mesmo rosto que o filho fazia.
- Seu monstro!!! - disse a mulher por fim, puxando o filho e caminhando para longe – Deveria ao menos se cobrir.
James permaneceu imóvel, em pé na rua. As palavras ecoavam na sua mente “seu monstro... monstro... deveria ao menos se cobrir... monstro... se cobrir...” James, num ato de costume, pôs a mão no bolso para pegar o lenço que não deixava de carregar consigo desde que era criança. Mas seus dedos não tocaram o tecido macio o sedoso que estavam acostumados, tocaram uma superfície dura e gelada, com formas arredondadas que iam se achatando e ficando mais finas e perigosas, e mortais, e monstruosas... “monstro... monstro... monstro...” as palavras ainda ecoavam impiedosas. James escorregou os dedos para os círculos do objeto e um choque lhe correu pelo corpo. “Monstro... monstro... monstro...”
James correu atrás da mulher que andava apressada tentando acalmar o filho que ainda soluçava um pouco. “Eu sou um monstro.” disse James a si mesmo. Quando a mulher foi olhar para trás, James lhe cravou a tesoura no pescoço, um esguicho de sangue vivo borrifou no seu filho que assistia àquilo incrédulo. Rapidamente, James tirou a tesoura da mulher fazendo o sangue espirrar ainda mais e com um movimento impressionantemente hábil, James cortou a garganta do menino antes que este gritasse novamente. O sangue de mãe e filho corria pela calçada, James também o tinha nas mãos e no rosto de monstro. “Eu sou um monstro.” repetiu James, dando meia volta e disparando para a sua casa.
Anne fazia força e sofria a cada contração que vinha. Thomas parecia ter esquecido do luto naquele momento, estava totalmente concentrado em conseguir fazer o parto e assegurar que ambos, mãe e filho, sobrevivessem. “Vamos Sra. Winnfild, está quase lá!” dizia a todo momento. Anne, apesar de tudo, encontrava forças para continuar lutando, tinha de fazer algo para retribuir àquele pequeno ser dentro dela que a manteve viva quando ela já não tinha mais vontade de viver. Mais uma vez, Anne sentiu o calafrio, mais forte desta vez, mais próximo talvez?
Agora a noite já caia pesada e escura em Winter Hill, o vento gelava o sangue quase coagulado nas mãos e no rosto de James, que agora andava num ritmo mais lento, sua cabeça doía muito, estava difícil de respirar, suas pernas pesadas, mas ele precisava chegar em casa, precisava que Anne o tornasse humano novamente, quando Anne o encontrasse, tudo voltaria ao normal, o pesadelo teria fim, eles iriam se mudar e um dia ter um filho que seria criado com todo o amor. James sentiu-se perturbado por um segundo, havia algo importante a ser lembrado... “monstro... monstro... monstro...” James gritava para si mesmo em sua mente. Era isso, ele era um monstro, não havia escapatória do pesadelo, o monstro fica preso no pesadelo quando você acorda, por isso o medo vai embora.
Anne procurava todas as suas forças, Thomas lhe dissera que já podia ver a cabeça da criança e, lutando contra a fadiga e a exaustão, Anne empurrou com tudo que ela pode, até que a dor aliviou e Thomas ergueu a pequena criança. Os olhos de Anne brilharam ao vislumbrar a pequena criatura que a mantivera viva, como um ser tão pequeno e indefeso lhe deu tanta força, tanta coragem para seguir em frente. A expressão de Thomas estava preocupada, mesmo depois de tudo ter acabado, mesmo depois de segurar aquele ser milagroso, Thomas não parecia feliz... “É mesmo!” pensou Anne “Embora a vida deva trazer felicidade a Thomas, a morte ainda está fresca em seu coração, a perda da esposa é um rio incontrolável que não há barreiras na nossa alma que possam contê-la.”
James agora estava perto da sua casa, sofrendo com seus conflitos internos, confuso, sua mente era uma bagunça, só havia uma ideia fixa para ele, ver Anne. Entrou correndo pelo caminho que levava à sua casa, sentia seu corpo pesado, sua respiração ecoava na cabeça e seu peito parecia inchar a cada passo que dava. Parou no ponto em que já era possível ver a sua casa, estava confuso com a carroça parada de qualquer jeito no meio do caminho. Era esse o seu mal pressentimento? Anne corria perigo? James segurou firme a tesoura gelada que jazia no fundo do bolso do seu casaco.
Anne ergueu os braços para que Thomas lhe passasse o seu filho, queria pegá-lo, senti-lo em seus braços, agradecer-lhe por existir. Mas Thomas continuava segurando a criança, olhando para ela com os olhos vazios, como se estivesse enfrentando um terrível dilema. “Me dê o meu filho, quero vê-lo” pediu Anne carinhosamente. Foi então que Thomas olhou para ela e uma lágrima rolou o seu rosto. “Me perdoe, Sra. Winnfild... a criança... está... morta.” disse lutando contra a dor. Após ouvir a última palavra, Anne não sentiu mais nada depois disso, estava fora do corpo, estava em um segundo plano, o olhar inexpressivo, seu corpo agora era uma frágil biscuit quebrável ao mínimo contato e sua boca suspirava inconscientemente as mesmas palavras: “Os dois me abandonaram... os dois me abandonaram... os dois...”
James caminhou cuidadosamente até a porta, ela estava aberta. Perturbado e com medo de algo de ruim ter acontecido a Anne, segurou mais forte a tesoura. Ouviu um murmúrio vindo da sala, tomou cuidado para não fazer barulho, sua respiração pesada já fazia alarde o suficiente, e a poucos centímetros da entrada da sala, ouviu a voz de Anne. Ele sentiu como se o seu coração voltara a bater, como se a máscara de monstro caísse e voltasse a ser o homem belo e apaixonado que faria qualquer coisa para ouvir aquela voz pelo resto da vida. James adentrou a sala e viu Anne deitada no sofá com um homem na sua frente segurando um monte de panos. Ele ignorou completamente o homem e dirigiu toda a sua atenção àquela figura frágil, que mesmo muito mais pálida, magra e gasta, ainda transbordava a beleza pela qual apaixonara-se na primeira vez que se viram quando eram crianças. “Os dois me abandonaram...” Anne continuava a repetir. James caminhou até ela.
Anne pareceu tornar a si novamente, um brilho fraco surgiu em seus olhos. Enxergou através da carne, dos tecidos e dos ossos, ela viu o homem que amava naquela criatura em pé ao seu lado. Seus olhos se encheram de lágrimas e seu coração voltou a bater quente e suavemente como há muito tempo não batia. Ela ergueu as mãos e James se abaixou com um pouco de receio dela rejeitar a sua aparência grotesca. Ela tocou seu rosto naturalmente, como sempre fazia, seus olhos espantavam qualquer perturbação que James sentira até ali. Anne puxou o rosto de James para mais perto como se quisesse dizer algo, ele se aproximou e pode ouvir a fraca e quase inexistente respiração da sua esposa.
- Me desculpe, querido. Nós não pudemos esperar por você... nós não tivemos forças para continuar ao seu lado... - suas palavras saíram num suspiro depois de muito esforço.
- Não dia isso, querida. Eu cheguei, eu estou aqui com você. Mesmo sendo um monstro, ainda te amo do fundo da minha alma – disse James começando a ficar preocupado.
- Ele... me deu forças para continuar viva... mas o que ele me deu foi tomado dele... Eu sinto muito... se eu fosse mais forte... viveríamos os três juntos para sempre... - Anne parecia cada vez mais fraca.
- Nós três? Não estou entendendo, querida. Não fale mais, você está exausta... - o único olho de James começava a se encher de água como se já pressentisse o que estava por vir.
- Eu... te... amo. Disse Anne por fim. Seu corpo se congelou numa pintura que perduraria décadas sem perder o fascínio que nos passava.
James não disse nada, não se mexeu, fechou-se em si. Thomas só podia ficar parado assistindo a tudo ainda segurando a criança que nascera morta enrolada em mantos. A noite lá fora parecia perturbada, com ventos que uivavam pela porta ainda aberta e as copas das árvores balançando inconsoláveis de um lado para o outro. Thomas permaneceu imóvel olhando para a figura que uma vez foi o belo e alegra rapaz que atropelara.
James voltou a si, abriu os olhos mas continuava com o olhar profundo de quem está solucionando algum problema ou tentando entender algo que foi dito.
- Então era isso. Eu teria um filho, você seria mãe. Mas eu matei um filho, eu matei uma mãe. É culpa minha, o preço foi cobrado agora. Me perdoe, querida. Eu sou um monstro mesmo no fim das contas. Por minha culpa, vocês foram colocados no outro prato para equilibrar a balança. James falava como se o problema fora solucionado enfim.
“A culpa é toda minha, vocês não mereciam pagar pela minha dívida.” Disse James antes de começar a chorar, um choro de pesar que fez Thomas lembrar da esposa que acabara de falecer. James olhou para o embrulho que Thomas tinha nos braços. “Me perdoe, meu filho.” Foi a última coisa que disse.
James lentamente pôs a mão no bolso do casaco, sentiu a frieza familiar da tesoura, sua textura lisa, seu peso... seu peso. O peso para trazer o equilíbrio.
- Me perdoem. Mais uma vez, a balança precisa de um contrapeso para manter o equilíbrio. Estou em dívida com vocês... - Então James retirou a tesoura do bolso, aconchegou seus dedos para ficarem firmes e seguros. Thomas entrou em pânico ao ver a tesoura com manchas vermelhas por sua superfície, só então reparou que James estava com as mãos e o rosto sujos de sangue, seu corpo tremeu instintivamente.
- Senhor, não faça isso, solte essa tesoura! Thomas gaguejou para James.
Mas James pareceu não ouvir mais nada a sua volta. Seus movimentos era lentos mas precisos, levantou a cabeça, olhando através do telhado, parecia ver Anne e seu filho assistindo a tudo acima das nuvens. Dirigiu a ponda da tesoura à sua garganta. Thomas permanecia paralisado assistindo àquilo.
Através do vento que urrava porta adentro, pôde-se ouvir cascos de cavalos pelo caminho que trazia à casa de James e Anne, “o casal Winter Hill”. Ouviu-se de fora vir o grito do senhor Winnfild e do Dr. Gibson. James permanecia na posição, não escutava mais nada, fechou os olhos.
Quando o som dos passos apressados no assoalho da casa ecoaram pela sala, James continuou o trajeto da tesoura, os homens entraram apressados na sala. Ouviu-se apenas o som de um corpo caindo no chão.


Música para ouvir: The Kiss – The Last of the Mohicans Theme (sugestão da namorada ^^)
Isso é tudo, pessoal! hauhauuha

2 comentários:

  1. Você sabe o que eu achei da história. Amei!O final saiu melhor do que eu esperava. Amei a parte quando Anne olhou para James com o mesmo amor, a mesma paixão de sempre, sem notar, sem ligar para o estado de seu rosto, porque isso não era nada perto do amor que ela sentia. Lindo, lindo! Parabéns mais uma vez, amor. :)

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  2. Você sabe que adoro seus contos, mas, que não gosto muito do fato de ter tanta morte neles, no entanto respeito sua maneira de escrever. Você me surpreendeu com o resultado do desafio que te fiz. Esse "romance" saiu melhor do que eu esperava. Juro que senti um frio na espinha enquanto terminava de ler o conto, vc sabe que sou tonta né? então as maneiras como vc escreveu e gesticulou as mortes dos personagens me deixou em transe, de verdadee.
    p.s: menos tragedia no proximo, ok?! =p

    Beijo Digão.

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