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domingo, 19 de agosto de 2012

Testamento

                Certamente nunca vi problema algum em conversar abertamente sobre a morte. Este assunto parece incomodar as pessoas, fazê-las pensar na única coisa que elas não têm controle, o único compromisso da vida em que elas não podem planejar, adiar ou cancelar.

            Mas não quero gastar o que me resta de tempo em reflexões clichês de aproveitar a vida, não desperdiçá-la. Fico realmente intrigado com pessoas que apontam para os outros dizendo que deveriam viver a vida como se fosse o último dia da sua vida. Isso não é possível, não conseguimos viver um dia por vez. Não é como se tivéssemos a opção de jogar tudo para o alto e entrar no caos. Eu acredito que a rotina anda de mãos dadas com a vida, é quase como o nosso instinto de sobrevivência.

            Pergunto-me o porquê de ter começado essa mórbida reflexão e então as duas palavras voltam a ecoar na minha cabeça, dançado como uma borboleta à minha volta. “Três meses” foi o que o médico disse. Eu tinha mais três meses… Acho que no fundo não me importo muito com isso. É mais como se eu tivesse uma vantagem sobre as outras pessoas e soubesse a minha data de validade.

            Normalmente as pessoas devem entrar numa jornada para o seu interior, pensando sobre a vida que levou e começar a tomar decisões idiotas como pular de paraquedas, mandar o chefe para o inferno e torrar as suas economias em festas. Elas acreditam que isto sempre foi o maior desejo das suas vidas, e que não podiam fazê-lo porque tinham família ou algo que as forçava continuar vivendo uma rotina chata e estressante.

            Não creio que elas realmente queiram fazer isso desesperadamente antes de morrer. Para mim essa é uma tentativa desesperada de serem lembradas. Este é o único meio de vencerem a morte individual. A história nos mostra diversos exemplos de como sermos imortalizados, e todos os homens com seus nomes nas folhas dos livros de História chegaram lá da mesma forma: através das nossas ações.

            Aí é o ponto em que eu queria chegar! Deixar a minha marca na história. E eu tinha três meses para isso. Eu tinha de fazer algo que me fizesse ser lembrado no mundo todo, esse sempre foi o maior desejo da minha vida. Eu não queria ser apenas mais um nome no obituário do jornal, eu desejava estar na primeira capa, ser a notícia do ano, da década, ter documentários e filmes sobre mim. E acho que não me saí tão mal assim, o mundo inteiro voltou-se para mim. Todos querem saber da minha vida, se o que me resta dela é o suficiente para uma última entrevista. Eu nunca gostei muito da mídia, mas ela serve muito bem ao meu propósito agora.

             Sei que tem muita gente me chamado de monstro e mal pode esperar pela minha morte, mas há quem me considere um herói que lutou contra o tirano vilão que oprimia a população sem voz. Eu não me importo com o que pensam de mim ou das minhas ações, a história não difere bem e mal, ela apenas registra os fatos, e foi exatamente o que eu fiz, uma grande bagunça. E esta é minha passagem para a fama póstuma.

***      ***      ***

            Eu passei a maior parte do julgamento com a cabeça em outro lugar. Pouco me importava o que seria dito ou a sentença que eu receberia, não fazia a mínima diferença. Mas confesso que foi até engraçado expressão de todos, sabendo que aquilo tudo era apenas uma formalidade, pura burocracia, todos partilhavam do sentimento de que eu sairia dali impune.

            Enfim, não há muito que eu possa fazer agora, apenas aguentar as dores finais que prenunciam o que já é esperado. Os três meses completaram há dois dias. Três meses desde a consulta com o médico, estou vivo há dois dias, funcionando na reserva, um pequeno presente para que eu possa ao menos ter certeza de que funcionou.

            Foi até engraçado comparar o meu feito com o de outras pessoas que marcaram a história da humanidade. Alexandre moveu seus domínios além do horizonte, Hitler foi a estrela principal do maior evento da história moderna, e eu só explodi um caminhão. Mas escolhi o melhor palco para isso.

            Parando para pensar agora, acho que fui meio hipócrita no início deste documento falando sobre pessoas que decidem fazer idiotices ao descobrirem que irão morrer logo. Eu realmente fiz a maior idiotice da minha vida três dias atrás, no dia que eu imaginava ser a véspera da minha morte. Roubei um caminhão tanque, cheio de gasolina e dirigi desesperadamente até o Congresso Nacional, não sei como escapei vivo de tudo aquilo, seguranças atirando de todos os lados e só tomei um tiro na perna. O resto todo mundo já sabe melhor até do que eu. Quando fui preso não tive mais contato algum com um meio de comunicação. Sou realmente grato por ter vivido ao ponto de ver que deu certo.

            Como já disse, não tenho mais o que fazer. Creio que os meus propósitos já foram explicados neste documento, o qual eu espero chegue ao conhecimento do povo. Este foi só mais um grito desesperado pela a vida, apenas mais um num mar de milhares de outros iguais a mim.

            No mais, estou orgulhoso de mim mesmo. Não tenho exigências quanto ao meu enterro, nem tenho a intenção de pedir alguma frase grandiosa na minha lápide, caso eu tenha uma. Não estou deixando bens materiais, vendi tudo o que tinha e dei o dinheiro a um terceiro a quem não identificarei, pois não vejo importância nisto.

José Maria da Silva

(Essa obra é uma ficção e eu não quero explodir o Congresso Nacional e os políticos corruptos que lá habitam, e caso alguém o faça eu não tenho nada a ver com isso)

Música para ouvir: Greystone Chapel – Johnny Cash (escrita por Glen Sherley)

domingo, 27 de maio de 2012

Falso Morfeu

Eu sonhei com o demônio esta noite.
Nada aconteceu, eu só estava em uma sala igual às salas de espera de consultórios médicos, com uma mesinha de centro com várias revistas em cima e vasos de plantas nos cantos da sala. Eu estava sentado em um sofá que fica do lado oposto ao da porta, no lado da porta havia duas poltronas e numa delas estava sentado um homem bem apessoado vestido de branco exceto pela gravata e pelos sapatos pretos lustrosos.
Aparentemente não se podia afirmar se o homem era o demônio ou não. Ele transparecia muita classe, superioridade. Ele tinha um olhar bastante amigável, como se nunca houvesse tempo ruim para ele, mesmo estando numa sala de espera de um consultório médico. Uma sala de espera sem uma recepcionista, sem uma TV... Só a reconfortante situação entre escolher alguma revista sobre design de ambientes ou ficar encarando um estranho e arriscar uma conversa sobre o tempo.
O sonho inteiro se passou comigo sentado olhando para o homem de branco que tinha um olhar despreocupado com a vida.
Na noite seguinte eu tive o mesmo sonho. Ele correu igualmente como na noite anterior mas, a poucos minutos antes de acabar como na vez passada, o homem de branco parou de olhar em volta da sala e se concentrou em mim. No começo eu fingi não notar, balancei a perna como se demonstrasse pressa para ser atendido e sair logo dali, ele não desviava o olhar de mim. Tentei uma olhada rápida enquanto movia a cabeça fingindo um leve mal estar no pescoço, mesmo passando rapidamente a vista por ele, vi seus olhos azuis totalmente concentrados em mim, mas dessa vez o olhar despreocupado dera lugar a um olhar de curiosidade, interesse e diversão. Comecei a me sentir realmente desconfortável e pensei em pegar uma revista na mesinha à minha frente. Quando estendi a mão para a mesa, quando ia tocar uma revista, ouvi uma voz macia e agradável tomar a sala e quebrar o silêncio pela primeira vez.
- Olá, Carlos. Como tem passado? - Por um momento  senti meu corpo congelar e um arrepio correu desce a ponta dos meus dedos prestes a pegar uma revista até a minha nuca.
Eu olhei para o homem e agora ele estava sorrindo com a seu rosto amigável. Acordei logo em seguida.
Senti-me muito mal o dia todo. Minha cabeça doía e o meu estômago passou a manhã toda doendo. Depois do almoço passei o resto do dia com náusea. Pedi licença do trabalho, sentia como se a minha cabeça fosse rachar e decidi ir para casa. Maria pareceu me ignorar completamente, nem se mostrou interessada na minha saída mais cedo do trabalho.
Ao abrir a porta, a escuridão e a umidade do ligar me deram um calafrio. Mas, felizmente, a falta de iluminação aliviara a minha dor de cabeça e passava a me sentir um pouco melhor. Andei até o sofá, me estirei e liguei a TV, logo a luz saída do aparelho correu aos meus olhos e alcançou a minha cabeça como lanças trazendo pulsos de dor consigo. Desliguei a TV e deitei no sofá olhando para o teto, coloquei uma almofada no rosto e apaguei. Um apagão.
Acordei cerca de cinco horas depois, cheguei em casa por volta das quatro e meia, o relógio quase anunciava as dez da noite e eu não tinha comido nada desde o almoço. Meu estômago aliviara e comecei a sentir um pouco de fome. Fui à cozinha e encontrei o bolo do dia anterior que eu nem tocara esta manhã por causa da dor no estômago. Peguei um pedaço pequeno para testar como estava agora, a cabeça doía ainda, mas não sentia mais náusea, mordi o pedaço de bolo, mastiguei um pouco e o engoli. Pude o sentir traçando todo o caminho até o meu estômago e, ao alcançá-lo, senti também ele voltando. Corri desesperado para o banheiro e vomitei na privada. Fiquei apavorado ao ver sangue junto, aquilo não era normal, dei descarga rápido e fui tomar um banho, depois fui me deitar.
Novamente estava na sala do consultório com o homem de branco me encarando. Agora ele tinha mais alegria no seu sorriso. Peguei logo uma revista na mesa e fingi não ligar para o homem à minha frente. Folheava a revista sem ler nada, só conseguia pensar em como o homem sabia o meu nome.
- É um sonho, Carlos. Eu sou um fruto do seu subconsciente, por isso sei o seu nome. Disse o homem de branco parecendo se deliciar a cada reação minha.
- Isso faz sentido. Foi só o que pude responder.
- Sabe - ele continuou - você não está nada bem. Deveria ir a um médico, esta cada vez mais ficando pior.
Eu o olhava sem saber o que dizer e isso parecia o divertir muito, e ele continuou - Mas talvez você não deseje mais ficar aqui, Maria não liga mais para você, mesmo depois de você ter se declarado para ela. É duro ter o amor por alguém rejeitado, não?
Desta vez ele deixou transparecer alguma amargura. Mas não tem problema, pois também sentir meu peito se comprimir e a garganta fechar, uma semana atrás eu disse para Maria que a amava, depois disso ela parou de falar comigo como fazia antes, só me cumprimentava ou vinha tirar alguma dúvida sobre alguma apólice de um cliente dela.
 - Mas estou aqui para te ajudar, e vou te contar enquanto você ainda tem tempo. Ela só se aproximou de você por causa das suas dores de cabeça. - o homem voltou a sorrir em júbilo. O que as minhas dores de cabeça tinham a ver com tudo isso? Elas começaram a cerca de um mês, até fui ao médico mas o resultado ainda não tinha cheg...
O homem sorriu, era evidente que ele sabia tudo o que eu estava pensando. Acordei logo em seguida.
Ainda estava escuro, o despertador ao meu lado anunciava 4:53 AM. A minha cabeça ainda doía e ao mesmo tempo em que eu levantava e me arrumava a dor ia crescendo. Eu não sabia bem o que iria fazer, mas continuei me arrumando e saí de casa, precisava ir ao trabalho checar uma coisa.
Como cheguei cedo, e muitas pessoas viravam a noite trabalhando na corretora, os seguranças não estranharam nada. Fui até a mesa da Maria e por sorte a sua gaveta estava destrancada. Vi muitos papéis de apólices e documentos de seguros de clientes, mas o que eu procurava estava no fundo da gaveta. Era uma carta do hospital dos funcionários da corretora, até aí não havia nada demais, exceto que ela estava endereçada a mim.
Descobrir aquilo já clareou muitas das minhas dúvidas. Maria notara as minhas dores de cabeça frequentes e se mostrou preocupada. Nós já conversávamos bastante, tínhamos os mesmos gostos e ironicamente as minhas dores de cabeça nos aproximou, alguns colegas até me perguntaram se estávamos namorando. Saímos duas vezes, e a maneira como ela me olhava preocupada quando eu tomava mais e mais aspirinas, aquilo mexia comigo, crescia algo dentro de mim. Ela me convenceu a ir ao médico há duas semanas, e há uma semana ela não falava mais comigo.
Voltei a minha atenção para a carta. Continha o meu nome e abaixo em negrito estava escrito "Resultados do Exame" então seguia um monte de nomes que nunca vi na vida e vários percentuais e, mesmo não sendo perito, pude ver que as coisas não estavam como deveriam estar.
A minha cabeça começou a doer mais forte e lembrei que ela tinha algumas aspirinas na gaveta também, fui procurar os comprimidos e vi de relance um papel com o meu nome escrito. Era um documento da corretora, um seguro de vida em meu nome, e Maria era a beneficiária primária. Uma dor abissal tomou a minha cabeça e por pouco tempo pensei que iria desmaiar. Eu precisava sair dali, não tinha certeza do que estava acontecendo, mas precisava ir a um médico com urgência. Virei-me para a saída e vi Maria parada atrás de mim me olhando com os olhos arregalados e com a respiração pesada.
- Me deixe explicar, Carlos. Eu estava confusa, e não sabia o que pensar sobre nós dois. - cada palavra que ela pronunciava era um pulso de dor que começava na minha cabeça e descia em uma onda enegrecendo a minha visão como se eu estivesse piscando os olhos rapidamente.
- Quando você descobriu que eu iria morrer? - perguntei sem demonstrar qualquer emoção.
Ela levou uma mão à boca tentando sufocar um choro. Parecia perdida, arrependida. "Eu precisava de dinheiro, estou devendo um dinheiro considerável ao banco e podia acabar perdendo o emprego, no início eu só ia te pedir um empréstimo até eu conseguir arrumar tudo, mas aí chegou a carta... eu estava desesperada.". Isso me enfureceu, ela brincou comido apenas porque não sabia administrar o próprio dinheiro? Minha morte iria ajudá-la a continuar comprando as suas bolsas, sapatos e roupas de grife para desfilar por aí?
- Mas eu desisti de tudo quando você se declarou para mim, eu não podia continuar com isso. - ela tinha desespero no olhar. Eu estava começando a me acalmar e pensar mais devagar quando ela continuou - Por favor, não conte ao Alberto, ele vai me demitir.
No fim, a vadia só estava preocupada com o próprio rabo. Eu agora a encarava enfurecido, ensandecido, e percebi que alguém nos olhava do corredor. Por trás do vidro eu vi um homem já familiar, com as suas roupas brancas e a gravata preta, ele me olhava com olhos entusiasmados, se deleitando com a cena, torcendo pelo que vinha a seguir, era como se estivéssemos em sintonia. Ele acenou com a cabeça como se me indicasse alguma coisa. Olhei para a mesa ao meu lado, em cima de uns papéis tinha um abridor de cartas de ferro. Foi com ele que Maria abriu a minha carta e teve a ideia para resolver os seus problemas? Pude imaginar ela recebendo a carta por mim, meu horário estava muito bagunçado então seria muito fácil a carta do hospital chegar em um dia que eu não estava lá e Maria, como estava atuando ser para todos, inclusive para mim,  a minha namorada ou algo assim, recebeu a carta com uma cara preocupada e disse que iria me entregar o mais rápido possível.
A minha mão pegou o abridor de cartas inconscientemente, a dor rachava atrás dos meus olhos, Maria olhava para mim e para a peça de ferro na minha mão. O homem no corredor observava tudo com os seus olhos apreensivos, como alguém sentado na poltrona do cinema assistindo a um momento de vida ou morte no filme.
- Por favor, Carlos. Não conte ao Alberto? - Ela insistiu mais uma vez. Era evidente que nada importava mais do que ela mesma. Não pensei em mais nada depois disso.
Segurei firme o abridor de cartas e o cravei no seu pescoço, ela tentou gritar mas saiu apenas um gorgole abafado. Infelizmente tinha alguns empregados entrando na sala no momento, eles estavam conversando mas não puderam deixar de perceber o que eu fiz. Eles gritaram o meu nome e tentaram me segurar. Eu me esquivei e parti para a saída, a cabeça doendo mais e mais, não conseguia pensar em nada além da dor. Até que tudo ficou preto.
Abri os olhos de novo no mesmo sofá de sempre. A mesma mesa, as mesmas revistas e o mesmo homem de branco me olhando. Ele estava alegre como sempre.
- Olá, Carlos. Divertiu-se tanto quanto eu?
- Quem é você afinal? Eu te vi lá na corretora, eu sonhei aquilo tudo também?
- Não, não. Lhe asseguro que todos os fatos naquela manhã foram completamente reais - ele disse com firmeza.
- Como naquela manhã? Eu não acabei de desmaiar?
- Você desmaiou há dois dias, depois de ter tentado matar a pobre Maria desmaiou poucos segundos depois. Agora está numa cama de hospital.
-Tentar matar? Ela não morreu? - ao mesmo tempo em que estava aliviado, queria que ela não tivesse escapado, queria que ela pagasse pelo que fez.
- Ela foi socorrida a tempo e está a um andar acima de você. Mas não precisa se preocupar em ela ainda tentar te matar e conseguir uma bolada com o seu seguro. Você fez jorrar tanto sangue dela que o documento do seu seguro que ela forjou ficou empapado de sangue, assim como muitas outras folhas não só na mesa dela, até nas janelas tinha sangue. Foi lindo! - ele não se continha de excitação.
- Você é um demônio! Deixe-me em paz! - tentei, pela primeira vez em todos os sonhos, me levantar do sofá e sair dali, mas não consegui.
Ele fez uma careta e depois um olhar de tristeza.
- A partir de agora me chame de Lúcifer, sim?
- O que? Por que está dizendo isso?
- Eu vim te buscar, Carlos. Eu comecei a te observar depois de tomar conhecimento da sua lamentável situação. Você me divertiu bastante, mas, no fim, todo jogo acaba, não é mesmo?
O homem agora tinha um olhar vago, como se estivesse se lembrando das melhores partes do filme que acabara de assistir no cinema.
Então a porta do consultório se abriu. O homem de branco se levantou e disse:
- Estou indo na frente, tudo bem? Não se atrase. - e deu uma risada antes de sair pela porta.
Pude sentir que se quisesse ir embora agora eu conseguiria, mas fiquei no mesmo lugar. Minha vida desmoronou em um mês. Não me importava agora do que se tratavam as minhas dores de cabeça, não me importava com o que iria acontecer com Maria, mesmo tendo quase certeza de que ela ganharia o seguro de vida que todos os funcionários têm, e provavelmente encontraria um meio de processar a corretora e ganhar mais alguma coisa.
Me inclinei para frente, afundei o rosto entre as mãos e comecei a chorar.

Fim

Música para ouvir: Little Children - Everly

segunda-feira, 23 de abril de 2012

La Pistola apresenta: O Jogo das Doenças


Haha. Se ainda não perceberam eu vou dizer... É, não confiem muito no que digo. Postar ao menos uma vez por mês? Hah, nunca espere algo que dependa da boa vontade de alguém. Hahahah

Enfim, comecemos com as velhas vagas promessas. Postarei uma vez por mês. Escreverei mais. Desenharei mais. Deixarei o videogame mais de lado. Perderei a minha barriga flácida. Cumprirei ao menos uma dessas metas.

Bem, como estou postando hoje, então já estou cumprindo com a primeira. Por mais que eu não esteja falando nada de relevante aqui.

Então, como eu deveria animar esse blog? Talvez eu devesse escolher um tópico a cada post e começar a falar coisas mirabolantes sobre ele, ou apenas reclamasse e xingasse tudo e todos? Todos gostam disso, não? E eu ainda seria contratado por alguma emissora (Muahaha, alfinetando pessoas que nem me conhecem e nem lerão isso?). Ou faço algum vídeo idiota e ganho a minha semana de fama na internet? Deus abençoe a inclusão digital.

Pois é, as pessoas adoram coisas inúteis... Precisamos de coisas inúteis para compensar todas as nossas preocupações? Não sei, acho que sim, escrevendo essas baboseiras e paro de pensar nos trabalhos atrasados da faculdade, o pouco dinheiro que tenho, o medo do filme dos Vingadores sair uma bosta... Nada nos interessa mais do que as tragédias, não é mesmo? Confesse que a música do plantão da Globo te dá medo, mas você quase não se contém de excitação para saber que merda que rolou. Vai me dizer que você nunca participou de uma competição de doenças? O quê? Não sabe o que é isso?

Jogo das Doenças
Mínimo de 2 jogadores

Instruções

1 – Comente sobre algum conhecido seu que está doente;
2 – O outro jogador irá comentar sobre outra pessoa que está com uma doença pior;
3 – Fale da morte horrível que algum conhecido do primo do seu tio teve;
4 – Logo as pessoas em volta começarão a comentar de doenças terríveis de mortes agoniantes, sempre superando as anteriores;
5 – Em poucos minutos o lugar tomará vida e se tornará sociável e convidativo à interação de novos jogadores.

Vai me dizer que você nunca participou disso? Hahahahah
Isso é tudo, pessoal!
Até mês que vem! (Já avisei no início... Não leve isso a sério)


Música para ouvir? Vamos de Empty Speces – Pink Floyd

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Origem da Chuva


Eu não me lembro há quanto tempo estou preso. Não me lembro nem há quanto tempo estou preso aqui. Não me lembro quando estas paredes tornaram-se familiares, amigáveis. As paredes me envolvem por todos os lados e a janela na minha frente é o meu único caminho à liberdade.
Na verdade, acho que sei há quanto tempo estou preso. Estou preso desde que tomei conta de que estava preso. Desde que percebi que não havia para onde escapar, as prisões tornaram-se claramente visíveis e cada vez menores.
Quando eu era pequeno, via na televisão um monte de cavalos selvagens correndo em um vasto campo e aquilo significava para mim a liberdade. Em seguida eu corria pelo quintal pela tarde toda e ia para a rua e não havia barreiras no meu mundo. Eu achava que não havia.
O tempo foi passando e o vídeo da tropa selvagem pelo campo passou a ser falso, não havia cavalo nenhum correndo livremente pelo campo. Aqueles cavalos já estavam encarcerados. Primeiro foram caçados pelo homem e em seguida presos num rolo de filme que rodaria e rodaria em milhares de caixas por toda parte.
O branco das paredes já não é mais branco para mim. O branco retorce e torna azul... verde, amarelo... vermelho... e retorna ao branco manchado e gasto. Há quanto tempo estou preso aqui?
Lembro de uma conversa que a minha mãe teve com o carcereiro de uniforme branco como todas as paredes. Ele dizia que nunca havia visto um caso tão peculiar, e chegava a ficar em dúvida se eu deveria mesmo estar ali. Minha mãe chorou quando nos despedimos, e nunca mais a vi. Quanto tempo faz mesmo?
Depois de descobrir a farsa do vídeo dos cavalos, as prisões tornaram-se fáceis de ver. Na escola seguíamos as regras diariamente, naturalmente. No primeiro dia de aula, eu entrei na sala e vi um monte de crianças sentadas, a professora mandou que eu encontrasse um lugar para me sentar e eu o fiz. É bem fácil adaptar-se às regras quando elas estão camufladas. Nós comemos na hora ordenada, estudamos quando nos mandam, fazemos silêncio quando nos olham feio e brincamos quando é permitido. É o mesmo roteiro para todas as prisões, mudando apenas as atividades. No trabalho, no mercado, em casa, em todos os lugares estaremos presos por paredes.
O carcereiro foi muito simpático comigo, costumam fazer isso para nos ludibriar. Conversou sobre bastantes coisas. Agora ele não conversa mais comigo... Será que foi algo que eu disse?
Lembro que ele teve uma reação semelhante à de um garoto com quem estudei no colégio. Quando contei pra ele como a chuva torna-se chuva. Ninguém parece acreditar nessa explicação, e confesso que também não acreditaria se não tivesse visto aquilo. Foi um tempo depois que descobri que não havia fuga da maior prisão de todas.
“E se houver a prisão infalível?” era o que eu pensava pouco antes de descobrir que meus questionamentos me levariam à resposta que temia.
Eu estava longe de casa. Saí pela porta e fui andando sem rumo e sem perceber o que estava fazendo. A única coisa que me passava pela cabeça é que precisava escapar daquilo. A prisão de viver, de estar preso a escolhas definidas há muitos anos, escolhas que a sociedade sacramentou. Eu continuei andando e por mais que pensasse logo as paredes iam solidificando e me guiando numa nova direção de um labirinto sem propósito. As paredes iam crescendo tão altas que eu tinha de erguer a cabeça cada vez mais, até ver que não poderia fugir daquela prisão.
Foi quando olhei para o alto. Uma nuvem flutuava tediosa no céu e vi a cabeça de um cavalo surgir e sumir rapidamente por cima da nuvem. Minha mãe me encontrou desmaiado quase fora da cidade e passei uma semana em casa com ela me seguindo para onde quer que eu fosse.
Finalmente pude ir para o colégio. O garoto com quem costumava brincar veio me perguntar por quê tinha faltado tando e contei que foi porque descobri como a chuva torna-se chuva. Ele me perguntou como e falei que acima das nuvens existem cavalos gigantes que correm sem rumo por toda a eternidade. Vários cavalos trotam sobre as nuvens tão ferozes que seus cascos ressoam como trovões acima da terra e quando os cascos de ferro atingem os blocos de gelo escondidos nas nuvens, relâmpagos e raios iluminam a terra fúnebre abaixo das nuvens. Ao correr pelos lagos acima das nuvens, a água respingava para todos os lados e a chuva caía sobre nós.
O carcereiro permaneceu sério após eu terminar, e não falou mais comigo. Então vim parar nesta cela de paredes coloridas que se tornam brancas no fim.
Mas não me importo se as pessoas não acreditam sobre como a chuva surge. Não ligo para nada mais, porque sei que nenhuma verdade tem valor enquanto você estiver preso. E a origem da chuva me levou a descobrir a maior de todas as prisões. Uma prisão da qual não podemos fugir. Eu vi o horizonte e uma linha dividia o céu da terra. Então percebi que não havia fuga disso. Não importa o quanto você ande, ao longo do horizonte irá se levantar a grande parede que sem percebermos torna-se teto e nos envolve sem chances de escapatória. O céu nos cobre por completo. Impedindo-nos de ir além. O mundo é a prisão mais perfeita que existe. A gravidade é o grilhão da natureza e o céu os muros. E sobre a terra, estamos presos com a falsa noção de liberdade, presos cumprindo cada um a sua prisão perpétua chamada vida.

Música para ouvir: Stairway to Heaven – Led Zeppelin

Aê, primeiro post do ano. Era para ser o último do ano passado, mas essa pausa prejudicou e com certeza o nível caiu, então peço desculpas e espero melhorar cada vez mais e passar o que já fui. Pretendo postar ao menos uma vez por mês, então fiquem de olho e obrigado.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Uma história verídica

Deixando de lado as diversas brincadeiras que desfrutamos no decorrer da nossa infência, desde pequeno, nutri um grande prazer em ouvir as pessoas contarem histórias, desde as mais corriqueiras até as bem elaboradas sobre fantasmas, sacis e outros produtos da criatividade interiorana.
Considero-me felizardo por ter vivido onde ainda era costumeiro os vizinhos sentarem-se nas suas calçadas no fim da tarde e deixarem sua imaginação fantasiar um pouco mais as suas lembranças voláteis.
Certo dia, me lembrando das tantas histórias que ouvi desde criança, uma delas tem me agarrado ultimamente, uma história que meu pai me contou, mais uma das tantas em que ele atuou quanto ainda morava no Rio.
Não me lembro de detalhes sobre qual bairro ele morava, ou em que ano isso aconteceu. Muitas vezes os detalhes podem servir para frisar a veracidade da história, acho que isso vai da capacidade do narrador em ser convincente. Mas vamos à história.
Meu pai tinha acabado de retornar do trabalho e estava conversando com os amigos quando ouviram alguém gritar quase que comemorando que uma mulher tinha se jogado na frente do trem que passava ali perto. Sempre me espanto como as pessoas podem vibrar quando seu tédio é afastado, qualquer evento que quebre a rotina é recebido de braços abertos, mesmo sendo, como na maioria das vezes, alguma tragédia.
Ao chegarem no local, meu pai e os amigos perceberam que a mulher na verdade havia se deitado com o pescoço na linha do trem. Mas a surpresa e o choque foram maiores por não encontrarem ao lado do corpo a cabeça da mulher suicída. Olharam ao redor mas não encontraram nada.
Até que um morador da rua, apareceu com os dentes arreganhados de tamanho triunfo em ter ganho o maior prêmio da festa. Ele carregava a cabeça da mulher segurando-a pelos cabelos, gritando "Olha a cabeça da mulher aqui!" e deixando os curiosos ao redor vislumbrarem o seu troféu. A maioria aconselhou que ele parasse com aquilo, abominavam a atitude do rapaz de zombar do corpo, mas talvez ele apenas visse aquilo como inveja... Creio que existam muitas pessoas como este por aí.
Terminado o alvoroço, todos voltaram para as suas casas, acredito que já fantasiando cenas que poderiam ter acontecido, e que certamente acrescentariam quando fossem contar aos pobres infelizes que não poderam presenciar o fato.
Então, no dia seguinte, desta vez meu pai ficou sabendo pelos vizinhos que o homem que declarou posse da cabeça de uma pessoa morta no dia anterior, no mesmo horário que a suicída, deitou-se na linda do trem e teve o mesmo fim que a mulher.
Se o fim da história foi apenas um fim fantasiado pelo meu pai, eu não sei. Mas a verdade realmente não me importa. Para mim, a verdade estraga as histórias. Para mim, melhor que presenciar os fatos, é ouvir os vários toques pessoais adicionados pelos narradores.

Demorei mas voltei... tentar postar com mais frequência. xD
Abraço, pessoal.

Música para ouvir: A Boy Named Sue - Johnny Cash

domingo, 25 de setembro de 2011

Monólogo

            Afundei-me na poltrona da sala defronte a janela que dava para o jardim dos fundos. Peguei o cachimbo que descansava na mesinha ao meu lado e apanhei os fósforos no bolso do meu casaco. Acendi o cachimbo e dei uma grande tragada enquanto me recostava e a poltrona me abraçava aconchegante. Soprei a fumaça prazerosamente e desfrutei dos segundos preguiçosos daquele fim de tarde.
            Lá fora, o jardim de cores fortes e vivas enegrecera com as pesadas nuvens que pairavam no céu, traguei outra vez, mais devagar, e ouvi no telhado um barulhinho simultâneo com o soprar da fumaça para a sala escura. Gotinhas solitárias batiam na telha anunciando o fim da estiagem. Poucos segundos se passaram até as poucas gotinhas aumentarem, balançando as flores e folhas do jardim, até formarem um som contínuo, impossível de decifrarmos a individualidade. Senti a poltrona mais confortável e o cachimbo mais prazeroso. Como eu adorava aquilo.
            Era conhecido por muitas pessoas por meus gostos estranhos e inexplicáveis, e não tenho motivos para descordar, sinto-me lisonjeado por apreciar o que os outros desmereciam. A chuva sempre me fascinou tremendamente. Uma dádiva dos céus. Como as pessoas poderiam não gostar da dádiva de encharcarem-se com a vida caída do céu? Eu poderia passar horas a apreciar as gotas caírem sem pressa, sem destino, sem permissão, esparramando nas superfícies, abraçando a todos. Os minutos correram calmos e silenciosos enquanto me afundava em júbilo que umedeceu-me os olhos.
            Agora tudo a minha volta me reconfortava e me felicitava por existir, traguei mais uma vez e deixei a fumaça vazar para fora de mim tão lenta que parecia solidificar-se enquanto dançava em pleno ar. Meus olhos mudaram de foco, deixei de apreciar a chuva cair no jardim e as gotas correrem na janela e passei a prestar atenção na fumaça. Esta tomou toda a sala, correndo pelos móveis e pelas paredes, do teto ao chão, a fumaça tomava todos os cantos. Estupefato, tentei entender o que havia acontecido. “Meu Deus!” exclamei, a casa deveria estar pegando fogo. Mas foi antes do meu corpo reagir ao perigo que a fumaça começou a mover-se com mais velocidade, circulando a minha volta e condensando. Rodopiou, rodopiou e foi-se unindo, comprimindo até uma bola branca pairando no ar na minha frente. A esfera alva ficou subindo e descendo lentamente no ar até que começou a tremer e num átimo tomou forma de homem.
            Encarei incrédulo o homem, emanava uma luz difusa e era inconsistente assim como a fumaça que lhe deu vida. Ele não tocava o chão, flutuava à sua própria órbita. Levei breves segundos para me concentrar no que me defrontava e mirei-me o olhar em seu rosto. Um gélido arrepio me correu a espinha quando nossos olhos se encontraram. O homem me encarava, mas estava tristonho, envolto em sua amargura. Senti-me sair do corpo quando associei o rosto do homem a uma lembrança muito familiar, pensei estar diante do meu pai, que morrera quando eu ainda era pequeno. Mas o homem possuía alguns traços peculiares que proporcionavam a distinção. O homem aparentava ter ao menos uns dez anos a mais que meu pai quando morrera, e não imaginei ser possível a alma de uma pessoa envelhecer após a morte. Além disso, meu pai era grisalho, e o homem tinha uma cabeleira preta que poderia ser reluzente como a minha se fossem fios de cabelo reais que a compusesse.
-        Muito me agrada o cair da chuva. – disse o homem me olhando nos olhos mas sem perder a tristeza evidente - Assim como tens os olhos umedecidos pela alegria do momento, muitos podem tornar-se melancólicos com a alegria que sentem, muitos podem sofrer por estarem felizes.
            “Mas minha melancolia nada tem a ver com a felicidade pela chuva. Minha melancolia é compartilhada por muitos que sentem uma dor universal, que atrevo dizer sortudos os que não a sentiram. Sofro pela dor de amar.”
            Permaneci ali, impossibilitado de livrar-me do abraço outrora confortante da poltrona e fugir dali, fugir do homem que eu não sabia estar enxergando na minha mente ou na minha sala. “Ainda pequeno fui mandado por minha família para um seminário. Segui veemente meu destino planejado por terceiros e não tinha problemas com isso. Mas minha mente talvez tenha sido minha maior dádiva e minha pior maldição. Não enxergava a fé, esta me escapava nos dedos assim como a matéria com a qual sou feito agora. Não me sentia correto continuar meu destino se não fosse de corpo e alma, então deixei o seminário e encarei os infinitos caminhos que temos na vida, agora sem ter alguém para indicar qual seguir.”
            “Arrumei um emprego como ajudante de escrivão e encontrei um lugar para morar. Tudo era novo e emocionante e por mais que praguejassem, a chuva que caía sempre me trazia a renovação da vida pelos céus, lavando as minhas incertezas e limpando a minha mente. Estava muito feliz e então a encontrei, Cecília.”
            Os olhos do homem lampejaram uma forte emoção por um segundo, até voltarem a transmitir dor e pesar.
-        Apaixonamo-nos instantaneamente, pela primeira vez eu me sentia completo, como se o destino atuasse como deveria ser, sem predição, sem arreios. Éramos tão compatíveis, estávamos em sintonia sempre, e nada importava ao nosso redor se estivéssemos juntos, completos.
            “Não levou muito tempo para vivermos juntos, era como se fosse algo completamente natural, não havia nada de incomum se ocorria entre nós. Agíamos como se estivéssemos esperando pelo o nosso encontro desde que nascemos, e o destinho traçado para nós fora maior que os destinos que pensaram ter escolhido vivermos.”
            A expressão de tristeza do homem evoluiu para pura dor e pesar. A amargura era tamanha que tornava-se quase mais apalpável que o próprio homem, me contraí involuntariamente protegendo-me da dor que pareceu ser minha. Apesar disso tudo, o rosto do homem tornava-se cada vez mais familiar, era quase possível emoldurar em volta do homem e dizer ser um retrato de algum parente meu, imaginei a moldura do espelho do meu quarto rodeando o homem a me refletir um reflexo flutuante.
-        Eu amava Cecília de todo o coração, e ela retribuía esse amor talvez até mais. As coisas não poderiam estar melhor até que a minha maldição mais uma vez surgiu para balançar o meu destino, mas desta vez bem mais forte, assim como as gotas da chuva balançam com fúria as flores do jardim atrás de mim.
            Eu já não prestava mais atenção na chuva, nem em nada ao meu redor, já perdera até a curiosidade em descobrir de quem seria aquela visão que me surgira, a única coisa que me importava era a história que o homem suspirava depressivamente.
-        Minha mente! Sim! - o homem transparecia fúria agora – Esta maldição não me pode aliviar, sempre em busca da minha ruína. Pois esta devia deliciar-se mostrando a razão sobrepujar a emoção com tamanha tirania e persistência.
            “Cecília fora noiva antes de me encontrar. Aquilo não me incomodara de início, mas o tempo é uma constante que pode nos salvar ou nos arruinar, e ele escolhera a razão para atuar em mim e definhar-me aos poucos.”
            “Passei a questionar-me se Cecília ainda guardava algum apreço por seu antigo companheiro, se ainda pensava nele quando a noite caía, quando as lembranças dominam a mente. Minha curiosidade por seu passado foi o maior erro que pude cometer. Penso agora que poderia ser diferente se a ignorância tomasse a minha mente e o amor triunfasse.”
            “Cecília não ligava para o passado, só nós dois que importava. Mas aos poucos os detalhes do seu passado me entristeciam, me indignavam. Oh, como a mente pode ser uma ferramenta tão cruel, a mesma mente que podia definir leis do universo e compor belíssimas obras, também poderia corroer a alma de um homem e matá-lo.”
            “Saber que outro homem possuíra o calor de Cecília me repugnava. Mas não me repugnava ela, me repugnava saber que o homem ainda podia existir em algum lugar. Como poderia viver depois de tudo que fizera? Cecília passou a sofrer com as minhas ideias, ela me amava e sentia-se incapaz de mudar o seu passado para agradar o meu grande e doentio ego.”
            “Eu tinha os meus momentos de claridade, via que estava agindo como um tolo, deveria viver o presente com a mulher que amo, o passado ficara para trás, onde não poderia mudar. Erro meu, o passado não pode mudar a si mesmo, mas é um grande fator de mudança do presente. Cecília não sabia mais o que fazer para nos salvar, ela me amava muito e eu a ela, mas a minha mente estava tomando o controle, pois tentava resolver meus dilemas racionalmente, um erro que os homens costumam cometer quando deveriam resolver tais problemas do coração com a emoção.”
            Boquiaberto, deixei o cachimbo cair no meu colo enquanto devorava a história do homem sem perder nenhum detalhe, como se a sua dor fosse minha. O rosto do homem começou a abrandar e acalmar-se até voltar à eventual tristeza e amargura.
-        Desta vez a minha mente não corrompia apenas o meu destino, mas tornava a vida de Cecília muito infeliz, porque ela sofria os meus sofrimentos. Tornei-me psicótico com o seu passado e deixei de viver o nosso futuro. Até o ponto que não pude voltar. Eu fugi de Cecília para um lugar em que ela não poderia me procurar, em que estaria tão longe que não lhe causaria mais sofrimentos. Eu nunca mais a vi... espero que tenha dado certo...
            A voz do homem começara a distanciar-se embora permanecesse na minha frente, seu olhar correu pela sala e por fim encontrou o meu. Vi seus lábios se moverem em algo que poderia ser um “Eu te amo, Cecília.” Mas seu corpo começava a perder consistência e tornar-se nuvem novamente. O homem foi-se dissolvendo até sumir em si mesmo.
            O som da chuva voltou à minha mente como se estivesse mudo antes e levantei-me num susto abrupto. Sentia a amargura que o homem sentira. Chorei em pesar com seu sofrimento e vi, agora certo de que era na minha mente, o rosto do homem rejuvenescer e mostrar a familiaridade com que tanto me intriguei.
            Sentei-me novamente na poltrona e voltei a encarar a chuva, que agora caía serena. Foquei meus olhos nas nuvens negras no céu que me lembravam vagamente meu visitante inusitado. Sorri para as nuvens e disse para mim mesmo.
-        Ide feliz, meu amigo. Não mais torture-se com isso, pois não há mais nada a temer. Vivamos o presente e que o passado apenas nos ensine.
            Fiz um leve aceno com a cabeça, peguei o cachimbo que derrubei no chão quando me levantei e repousei-o na mesinha ao meu lado. Fiquei olhando a chuva cair até que o sono chegou-me pesado e irresistível. Meus olhos baixaram devagar e só pude sentir um forte sentimento de felicidade me tomar.


Música para ouvir: The Rain Song – Led Zeppelin

Valeu pessoal. Voltando ao ritmo.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O Casal Winter Hill



James Winnfild chegara na pequena cidade de Winter Hill quando tinha dez anos, seu pai decidira abrir um pequeno mercado ali depois de ganhar uma grande quantia de herança de uma tia por parte de pai. Anne White nascera e crescera em Winter Hill, sua família está lá desde os seus bisavós, que se mudaram para lá no mesmo ano da fundação da cidade e entraram no ramo da sapataria desde então.
No seu primeiro dia em Winter Hill, James caminhava pela calçada das pequenas lojas que seriam vizinhas do grande mercado que seu pai iria criar usando o espaço de três lojas. James seguia em frente olhando para a rua, vendo as carroças passarem mais apressadas do que deveriam. Chegando à esquina, já ia avançando para a rua quando Anne o puxou de volta pouco antes de uma carroça passar rente à calçada. A carroça estava tão rápida que arremessou uma onda de lama nos dois sentados na calçada que se olhavam com olhos arregalados. James tirou do bolso do seu casaco um lenço, aprendera com seu pai a sempre carregar um lenço consigo, e ofereceu a Anne como forma de agradecer por ter-lhe salvo a vida. Anne abriu um sorriso largo, pegou o lenço e limpou o rosto de James ao invés do seu próprio. Naquele momento, James, mesmo com seus dez anos e oito meses de idade, soube que estava apaixonado, e queria passar o resto da vida com a menina na sua frente.
O tempo provou que a paixonite infantil amadureceu e se tornou amor verdadeiro. James e Anne eram frequentemente referidos como “o casal Winter Hill” e ambos apenas se olhavam e riam felizes ao ouvir seu apelido. E foi no inverno do ano seguinte ao da morte dos pais de Anne, fato que abalou o casal com a mesma força, que James a pediu em casamento, quando ambos tinham 23 anos. Os pais de James acharam a decisão muito precoce, muito embora soubessem que os dois já estavam decididos daquilo antes de informá-los, e pediram para que o casal noivasse por dois anos, quando James assumiria o mercado do pai. James e Anne aceitaram a proposta de bom grado, afinal eles praticamente já viviam como casados, o casamento seria apenas uma oficialização.
Um ano se passou e decidiram viajar para o litoral, onde passaram duas semanas em um pequeno chalé em uma montanha perto do mar. No último dia antes de voltarem, James preparou uma festa surpresa para Anne. Eles casaram no alto da montanha, vislumbrando o mar. Os pais de James relutaram quando souberam, mas, no fundo, sabiam que algo como aquilo poderia acontecer, qualquer um podia ver o amor transbordar dos dois quando estavam juntos.
O casal Winter Hill vivia feliz em uma casa, perto de um bosque saindo da cidade, construída pelo pai de James como presente de casamento, James assumira o negócio do pai e já planejava abrir outro mercado em uma cidade vizinha, quando o casal trouxe a notícia que toda a cidade esperava, Anne estava grávida. O casal agora parecia mais feliz que nunca.
Cinco meses se passaram. Certo dia, num fim de tarde, James saíra mais cedo do mercado pois queria chegar logo em casa e preparar o jantar para Anne, que reclamava estar bem e podia fazer essas simples tarefas, mas ele nunca dava ouvidos. James decidiu voltar a pé para casa, chovera pela manhã, mas o sol dominou todo o resto da tarde e nada melhor que uma caminhada para abrir o apetite, James estava ciente de sua pouca habilidade culinária embora Anne nunca reclamasse e quase sempre repetisse os pratos que ele fazia. Na metade do caminho, lembrou-se que precisava de cenouras, planejava fazer um ensopado de carne e Anne adorava cenouras. Voltou agora um pouco apressado, queria chegar logo em casa e ver o doce e caloroso sorriso de sua esposa.
James avançou a rua sem estar ciente disso, do mesmo modo que fizera no dia em que encontrara Anne, mas dessa vez ela não estava lá para salvá-lo. James deu três passos em direção a outra calçada, perdido em pensamentos, quando uma carroça apressada, igual às que vira quando criança, veio em seu rumo tão rápido que nem ele nem o homem na carroça puderam fazer algo para evitar o que se seguiu. James foi atropelado pela carroça. O cavalo o derrubou e um dos seus cascos o acertou no rosto, em seguida uma roda da carroça novamente o atingiu no rosto. A carroça virou e espalhou pela rua as abóboras que o homem transportava. O homem escapou com apenas um leve arranhão no ombro esquerdo e uma dor no braço esquerdo. Ele se levantou e correu em direção do transeunte que acabara de atropelar. A lama quase seca pelo sol vespertino agora estava molhada, gerando pequenas poças escarlates que se enchiam com o sangue que corria do rosto de James, estirado no chão lamacento.
James foi levado às pressas ao hospital da cidade e Dr. Gibson conseguiu lhe salvar a vida, mas sofreu muitos danos na cabeça e não era possível saber quando iria acordar. O dono da carroça, que foi levado ao hospital também, após o relatório do médico, decidiu que ele mesmo deveria informar à esposa do enfermo o ocorrido, e o Dr. Gibson, que era amigo do pai de James achou que seria melhor deixar com o pai de James a função de contar à Anne sobre a tragédia. O médico enviou um criado à casa dos Winnfild, e poucas horas depois, Anne apareceu no hospital, seu rosto estava vermelho e marcado de lágrimas, mas transpirava força e determinação para ir até o leito de James.
- Senhora, me perdoe. Meu nome é Thomas Jackson e... fui eu... quem atropelou o seu marido. Disse o dono da carroça olhando para o chão. Anne acertou-lhe um tapa no rosto e seguiu em direção ao quarto em que repousava James. Thomas sentiu a maçã do rosto queimar, mas permaneceu imóvel no branco corredor do hospital, desolado, frustrado, decepcionado consigo.
O Dr. Gibson já previa a vinda de Anne e a convenceu a não entrar no quarto. Alertou-a dos danos sofridos no rosto do marido e que ela deveria esperar que eles pudessem, agora que estabilizaram o estado de James, tentar recuperar o seu rosto. Anne encontrou todas as forças que lhe restavam para permanecer consciente, ela não se permitiria desmaiar, e permaneceu sentada ao lado da porta do quarto até que o pai de James apareceu para levá-la para casa, o médico disse que não seria bom para a gravidez dela que passasse por tamanha tensão.
Saindo do hospital com o auxílio do sogro, Anne parou na porta. O pai de James logo entendeu e não a forçou a continuar andando. Thomas estava do lado de fora do hospital, com duas crianças o puxando um por cada braço. “Papai, o senhor está bem? Nós conseguimos recuperar algumas abóboras.” Disse o menino. A menina parecia ainda estar se recuperando do susto e continuava a enxugar as lágrimas que não paravam de cair. Anne que primeiro sentira ódio do homem, agora já não tinha certeza sobre o que acreditar, se sentia muito fraca, pediu para o sogro levá-la para casa. Ela precisou apenas encostar o rosto no travesseiro para dormir profundamente.
Anne acordou no dia seguinte com alguém batendo à porta. Imaginou ser James que fora comprar pães frescos para o café da manhã e esquecera a chave da porta, enfim tudo não passara de um terrível pesadelo. Ela disparou até a porta, arrumando-se como podia, tentando limpar as manchas das lágrimas que correram a noite toda enquanto dormia. Ao abrir a porta, o baque veio todo de uma vez junto com o vento frio que adentrou em casa. Não era James que estava na porta com pães frescos na mão e um largo sorriso no rosto dizendo estar frustrado por ter esquecido a chave e não conseguir surpreendê-la com um café da manhã na cama. Era Thomas quem estava à porta, com um chapéu surrado em mãos, “Bom dia, senhora Winnfild. Sei que a senhora tem todos os motivos para não querer nem olhar para mim. Eu também não vim aqui pedir perdão, pois eu mesmo sei que não o mereço. Eu vim aqui para dizer à senhora que ajudarei no que for possível.” Anne o olhou impiedosamente, agradeceu por não ter mais lágrimas para chorar naquele momento, e fechou a porta. Thomas caminhou até a carroça, que escapou pouco avariada, e pegou uma grande abóbora que trouxera, Anne que espiava da janela viu novamente as duas crianças que puxavam o homem na noite anterior, o menino aparentava ter 8 anos enquanto a menina não deveria ter mais que 4. Thomas trouxe a abóbora até a entrada e bateu à porta novamente, as crianças olhavam atentas para o pai, então o coração de Anne amoleceu e ela abriu a porta. “São seus filhos?” perguntou Anne. “Sim senhora, o mais velho se chama Jack e a menina chama-se Rosalie” disse Thomas enquanto carregava a abóbora para a cozinha guiado por Anne. Thomas deixou a abóbora, acenou e ia embora quando Anne o chamou “Os seus filhos já tomaram café da manhã?” Thomas vacilou e respondeu que não, mas já estava a caminho do armazém, ia vender algumas abóboras e conseguir dinheiro para o café. Thomas já estava partindo quando Anne gritou, enquanto corria em direção à carroça “Espere! Isto é para as crianças.” e entregou uma cesta com quatro pães. As crianças arregalaram os olhos maravilhadas, o pai as ordenou que agradecessem e então partiram.
Os dias se arrastaram com Anne indo diariamente ao hospital na esperança de receber boas notícias, mas o estado de James permanecia o mesmo, e ela parecia ficar cada dia mais fraca e abatida. O Sr. Winnfild sugeriu que ela fosse morar com eles até que James acordasse, mas Anne se recusava, apesar de toda a tristeza, tinha esperanças de James acordar antes daquilo ser necessário.
Um dia, quando Anne retornava do hospital, ela percebeu a carroça de Thomas em frente à sua casa. Ele aparecera outras vezes para trazer algumas abóboras ou outras coisas necessárias no dia a dia que Anne pedia para que trouxesse quando fosse à cidade fazer compras. Apesar do que Thomas fizera ao seu marido, Anne já não lhe guardava mais rancor. Thomas estava em pé ao lado da carroça esperando enquanto seu casal de filhos corria nos fundos da casa perto do bosque. Por um momento Anne reparou a beleza de Thomas que passara despercebida em função da fúria e o ódio que tinha pelo homem antes, ele era alto, loiro, tinha um porte maior que o de James em função do trabalho pesado e olhos quentes e reconfortantes.
O peito de Anne deu uma pontada de dor pelo que ela pensou. Como poderia estar admirando a beleza do homem que pode ter causado a morte do seu marido? Ela vacilou por um instante mas continuou em frente quando ele a avistou.
- Desculpe-me por aparecer assim sem avisar - desculpou-se Thomas abrindo um sorriso constrangido e sincero.
- Não se preocupe com isso... Se tiver algum tempo posso arranjar algo para as crianças comerem - respondeu Anne, um pouco envergonhada com a intimidade que desenvolvera com o homem.
- Eu agradeço, mas só passei para deixar um pouco de carne que consegui na feira ontem e saber se a senhora queria uma carona para o hospital hoje.
- Eu acabei de voltar de lá. Mas o senhor não precisa negligenciar o seu trabalho para me levar à cidade, já está fazendo muito me trazendo essas coisas.
- Nunca farei algo que chegue perto de me redimir, mas estou indo ao hospital para visitar a minha esposa.
- Meu Deus, está tudo bem? Se me permite perguntar – Anne percebeu que Thomas não tinha mencionado a esposa desde então, ela nem sabia se ele era casado.
- Ela está muito doente, está muito fraca, o médico já fez diversos exames ainda não sabe do que se trata.
- Sinto muito por isso. Há quanto tempo ela está doente?
Thomas tremeu. Já não olhava mais nos olhos de Anne e pareceu receoso de responder. Anne ficou confusa com a sua reação, talvez o assunto o machucasse ou relembrar isso lhe tirasse as poucas esperanças que tinha.
- Ela está no hospital desde o dia que... eu... atropelei o Sr. James. Quando soube, fui correndo para o hospital e estava tão desesperado que não pude controlar a carroça quando o Sr. James entrou na minha frente. Me perdoe por isso, por favor...
Os olhos de Anne embaçaram com as lágrimas prontas para rolar por sua face, a conversa lhe trouxe tanto raiva quanto compaixão pelo homem na sua frente. Ela não disse mais nada, Thomas pareceu entender e a acompanhou em silêncio até a cozinha, onde ele deixou a carne e chamou as crianças para irem embora.
Naquela noite, Anne sentiu-se extremamente sozinha. Queria que as coisas pudessem voltar ao normal, que tudo fosse um horrível pesadelo. Já estava perdendo as esperanças, esperança em James acordar e esperança em continuar viva. Foi então que sentiu um chute na barriga. Seu bebê lhe dizia que não estava sozinha, que não importasse o que acontecesse, ela tinha um motivo para continuar vivendo. Após dias de tristeza e angústia, ela teve um motivo para chorar de felicidade.
A medida que os dias passavam, as esperanças esvaíam-se como uma fina areia que escapara pelas minúsculas brechas de uma mão fechada, e uma segunda mão se fechava sobre o coração de Anne, que se agarrava ao seu bebê para continuar vivendo. Dois meses se passaram desde o acidente de James, e Anne não era nem sombra da mulher de antigamente. A linda mulher com o sorriso quente e espontâneo que alegrava tudo ao seu redor agora estava esquelética, com olheiras negras e o lindo cabelo longo e brilhante que fora um dia agora estava despenteado, sem vida, assim como ela.
Um dia, no final da tarde, Anne estava recolhendo a roupa do varal quando sentiu uma forte pontada no ventre. Ela se assustou, a dor aguda que persistia em seu ventre lhe trazia de volta à vida, estava fraca e vacilou por um instante quase desmaiando. Estava sozinha em casa e Thomas não ficara de lhe trazer nada hoje, o medo começou a arranhar seu peito e o desespero subiu à garganta.
Foi quando ela ouviu o som que tornara-se familiar, os cascos do cavalo cavando a terra dura do caminho que trazia à sua casa, as rodas que rangiam preguiçosas, era a carroça de Thomas que estava a caminho, Anne suspirou aliviada, Thomas lhe trazia tamanha segurança que ela perdia qualquer medo e ansiedade quando estava com ele, e o som lhe informava que não havia mais o que temer, ele estava chegando.
Quando Thomas avistou a casa, rapidamente percebeu o corpo jogado no chão, não precisou pensar para saber que era Anne que estava caída e pulou da carroça e foi correndo até ela. Ela estava consciente, mas muito debilitada para ficar em pé. “O que aconteceu, Sra. Winnfild?” quase gritou com o susto. “Acho que o bebê vai nascer... acho que está na hora.” suspirou Anne refletindo na expressão as dores das contrações que sentia.
Thomas a levou para dentro e praguejou por ter vindo sozinho, ela não estava em condições de ser levada ao hospital, e não havia como pedir ajuda. Uma lágrima caiu sobre o rosto de Anne e ela percebeu que o homem, embora procurasse esconder isso e se focar na situação, estava terrivelmente desolado.
- Thomas... o que aconteceu? - Anne perguntou.
- Não é nada... a Sra. Não precisa se preocupar... eu... fiz o parto dos meus filhos. Eu posso... - Thomas não conseguiu terminar a fala e chorou sem se segurar.
Anne, mesmo debilitada e com muitas dores percebeu o que tinha acontecido.
- A sua esposa? Ela está bem?
- Não, senhora... Ela... Ela morreu há algumas horas. Eu estava no hospital até agora... Ela estava muito fraca e teve um crise respiratória... Não se preocupe, eu vou ajudar a senhora. Disse o homem em meio às lágrimas.
As dores estavam ficando mais fortes. Sofrendo com as dores e a fraqueza, Anne teve um pressentimento estranho que quase lhe passou despercebido, mas um frio na espinha lhe indicou que algo de ruim estava prestes a acontecer.
Ao mesmo tempo, no hospital, James abriu o olho direito. O Dr. Gibson estava trocando as suas ataduras com uma tesoura enorme e pontuda e ambos se assustaram com a situação.
- Onde está Anne? Quase gritou James, percebendo que havia algo errado com a sua fala, não sentia movimento no lado esquerdo da sua boca.
- Acalme-se, James. Você se lembra de mim? Sabe quem eu sou? Disse o médico procurando retomar a postura profissional e recuperar-se do susto.
- Dr. Gibson... Eu fui atropelado... Onde esta Anne? Disse James, parecendo tentar recuperar a última lembrança que teve.
- Ótimo! Me parece que o seu cérebro não sofreu danos relevantes. Não se preocupe agora, precisa ficar aqui para mais alguns exames e possivelmente amanhã poderá ir para casa. Mandarei alguém à casa de seus pais agora para avisar-lhes que acordou. Apenas descanse, daqui a pouco sua família virá te ver.
O Dr. Gibson colocou a grande tesoura no seu casaco e saiu do quarto.
James permaneceu quieto ainda tentando reorganizar seus pensamentos, mas estava com uma sensação estranha e pressentia algo ruim. Ele se levantou e caminhou até o pequeno banheiro do seu quarto. Foi lavar o rosto e sentiu um deformidade no seu lado esquerdo do rosto, percebeu que não estava enxergando bem também. Acendeu a luz do banheiro e olhou para o espelho.
O terror correu pela espinha de James, que defrontava pasmo seu novo rosto. Uma grossa camada de pele caía da sua testa e lhe cobria o olho esquerdo, sua maçã esquerda do rosto afundara e sua boca parecia ter sido derretida no lado esquerdo. Na verdade, parecia que lhe tinham jogado um ácido no lado esquerdo do rosto, nem mesmo tinha cabelo naquela área e ele parecia não ter mais a orelha esquerda e tinha um acúmulo de carne na frente do rosto que deveria ser o seu nariz antigamente. James começou a chorar, não queria acreditar que era aquela criatura refletida no espelho. Estava caindo na escuridão dentro de si quando uma brisa gelada lhe correu à nuca. Algo ruim estava para acontecer. “Anne!” ele disse antes de seguir para a porta do quarto.
O hospital estava totalmente silencioso, James sabia que não teria para sair, sabia que deveria sair sem que percebessem. Esgueirou-se até a sala do Dr. Gibson, que era o último obstáculo até a saída, e espiou para dentro da sala. O médico não estava lá, talvez tenha resolvido ir pessoalmente avisar as “boas novas”. Mas o seu casaco ainda estava lá, talvez tenha apenas ido ao banheiro, James sabia que não teria muito tempo se tivesse suposto corretamente, então rapidamente vestiu o casaco do Dr. Gibson e correu para fora do hospital.
Fora do prédio estava muito escuro, não se via pessoas na rua. James correu até sair do campo de visão do hospital e seguiu em um passo apressado para a sua casa. Seguia em silêncio, parecia ter reorganizado tudo que era importante de se lembrar, estava casado com Anne, morava em uma casa perto do bosque saindo da cidade, estava no lugar de seu pai nos negócios da família... e fora atropelado por uma carroça. A cena da carroça investindo furiosamente contra ele lhe quebrava por dentro, por mais que tentasse, não conseguia esquecer a singular dor dos cascos do cavalo entrando em atrito com a sua pele, não precisava se esforçar para lembrar da dor, quase sentir, da roda da carroça vindo na sua direção, a madeira amassando e rasgando a sua carne impiedosamente.
Ao virar uma esquina, James deu de frente com um menino que corria despreocupadamente, isso o fez lembrar do acidente novamente. O menino se levantou e olhou James no rosto para se desculpar, mas nenhum pedido de desculpas saiu da sua boca, que ficou paralisada e trêmula por um minuto, o que saiu de sua boca foi apenas um grito de pavor. James não sabia o que fazer para acalmar o menino que chorava sem parar até que uma mulher que deveria ser a mãe do menino apareceu.
- O que acontec... Oh Meu Deus!!! - gritou a mulher encarando James com o mesmo rosto que o filho fazia.
- Seu monstro!!! - disse a mulher por fim, puxando o filho e caminhando para longe – Deveria ao menos se cobrir.
James permaneceu imóvel, em pé na rua. As palavras ecoavam na sua mente “seu monstro... monstro... deveria ao menos se cobrir... monstro... se cobrir...” James, num ato de costume, pôs a mão no bolso para pegar o lenço que não deixava de carregar consigo desde que era criança. Mas seus dedos não tocaram o tecido macio o sedoso que estavam acostumados, tocaram uma superfície dura e gelada, com formas arredondadas que iam se achatando e ficando mais finas e perigosas, e mortais, e monstruosas... “monstro... monstro... monstro...” as palavras ainda ecoavam impiedosas. James escorregou os dedos para os círculos do objeto e um choque lhe correu pelo corpo. “Monstro... monstro... monstro...”
James correu atrás da mulher que andava apressada tentando acalmar o filho que ainda soluçava um pouco. “Eu sou um monstro.” disse James a si mesmo. Quando a mulher foi olhar para trás, James lhe cravou a tesoura no pescoço, um esguicho de sangue vivo borrifou no seu filho que assistia àquilo incrédulo. Rapidamente, James tirou a tesoura da mulher fazendo o sangue espirrar ainda mais e com um movimento impressionantemente hábil, James cortou a garganta do menino antes que este gritasse novamente. O sangue de mãe e filho corria pela calçada, James também o tinha nas mãos e no rosto de monstro. “Eu sou um monstro.” repetiu James, dando meia volta e disparando para a sua casa.
Anne fazia força e sofria a cada contração que vinha. Thomas parecia ter esquecido do luto naquele momento, estava totalmente concentrado em conseguir fazer o parto e assegurar que ambos, mãe e filho, sobrevivessem. “Vamos Sra. Winnfild, está quase lá!” dizia a todo momento. Anne, apesar de tudo, encontrava forças para continuar lutando, tinha de fazer algo para retribuir àquele pequeno ser dentro dela que a manteve viva quando ela já não tinha mais vontade de viver. Mais uma vez, Anne sentiu o calafrio, mais forte desta vez, mais próximo talvez?
Agora a noite já caia pesada e escura em Winter Hill, o vento gelava o sangue quase coagulado nas mãos e no rosto de James, que agora andava num ritmo mais lento, sua cabeça doía muito, estava difícil de respirar, suas pernas pesadas, mas ele precisava chegar em casa, precisava que Anne o tornasse humano novamente, quando Anne o encontrasse, tudo voltaria ao normal, o pesadelo teria fim, eles iriam se mudar e um dia ter um filho que seria criado com todo o amor. James sentiu-se perturbado por um segundo, havia algo importante a ser lembrado... “monstro... monstro... monstro...” James gritava para si mesmo em sua mente. Era isso, ele era um monstro, não havia escapatória do pesadelo, o monstro fica preso no pesadelo quando você acorda, por isso o medo vai embora.
Anne procurava todas as suas forças, Thomas lhe dissera que já podia ver a cabeça da criança e, lutando contra a fadiga e a exaustão, Anne empurrou com tudo que ela pode, até que a dor aliviou e Thomas ergueu a pequena criança. Os olhos de Anne brilharam ao vislumbrar a pequena criatura que a mantivera viva, como um ser tão pequeno e indefeso lhe deu tanta força, tanta coragem para seguir em frente. A expressão de Thomas estava preocupada, mesmo depois de tudo ter acabado, mesmo depois de segurar aquele ser milagroso, Thomas não parecia feliz... “É mesmo!” pensou Anne “Embora a vida deva trazer felicidade a Thomas, a morte ainda está fresca em seu coração, a perda da esposa é um rio incontrolável que não há barreiras na nossa alma que possam contê-la.”
James agora estava perto da sua casa, sofrendo com seus conflitos internos, confuso, sua mente era uma bagunça, só havia uma ideia fixa para ele, ver Anne. Entrou correndo pelo caminho que levava à sua casa, sentia seu corpo pesado, sua respiração ecoava na cabeça e seu peito parecia inchar a cada passo que dava. Parou no ponto em que já era possível ver a sua casa, estava confuso com a carroça parada de qualquer jeito no meio do caminho. Era esse o seu mal pressentimento? Anne corria perigo? James segurou firme a tesoura gelada que jazia no fundo do bolso do seu casaco.
Anne ergueu os braços para que Thomas lhe passasse o seu filho, queria pegá-lo, senti-lo em seus braços, agradecer-lhe por existir. Mas Thomas continuava segurando a criança, olhando para ela com os olhos vazios, como se estivesse enfrentando um terrível dilema. “Me dê o meu filho, quero vê-lo” pediu Anne carinhosamente. Foi então que Thomas olhou para ela e uma lágrima rolou o seu rosto. “Me perdoe, Sra. Winnfild... a criança... está... morta.” disse lutando contra a dor. Após ouvir a última palavra, Anne não sentiu mais nada depois disso, estava fora do corpo, estava em um segundo plano, o olhar inexpressivo, seu corpo agora era uma frágil biscuit quebrável ao mínimo contato e sua boca suspirava inconscientemente as mesmas palavras: “Os dois me abandonaram... os dois me abandonaram... os dois...”
James caminhou cuidadosamente até a porta, ela estava aberta. Perturbado e com medo de algo de ruim ter acontecido a Anne, segurou mais forte a tesoura. Ouviu um murmúrio vindo da sala, tomou cuidado para não fazer barulho, sua respiração pesada já fazia alarde o suficiente, e a poucos centímetros da entrada da sala, ouviu a voz de Anne. Ele sentiu como se o seu coração voltara a bater, como se a máscara de monstro caísse e voltasse a ser o homem belo e apaixonado que faria qualquer coisa para ouvir aquela voz pelo resto da vida. James adentrou a sala e viu Anne deitada no sofá com um homem na sua frente segurando um monte de panos. Ele ignorou completamente o homem e dirigiu toda a sua atenção àquela figura frágil, que mesmo muito mais pálida, magra e gasta, ainda transbordava a beleza pela qual apaixonara-se na primeira vez que se viram quando eram crianças. “Os dois me abandonaram...” Anne continuava a repetir. James caminhou até ela.
Anne pareceu tornar a si novamente, um brilho fraco surgiu em seus olhos. Enxergou através da carne, dos tecidos e dos ossos, ela viu o homem que amava naquela criatura em pé ao seu lado. Seus olhos se encheram de lágrimas e seu coração voltou a bater quente e suavemente como há muito tempo não batia. Ela ergueu as mãos e James se abaixou com um pouco de receio dela rejeitar a sua aparência grotesca. Ela tocou seu rosto naturalmente, como sempre fazia, seus olhos espantavam qualquer perturbação que James sentira até ali. Anne puxou o rosto de James para mais perto como se quisesse dizer algo, ele se aproximou e pode ouvir a fraca e quase inexistente respiração da sua esposa.
- Me desculpe, querido. Nós não pudemos esperar por você... nós não tivemos forças para continuar ao seu lado... - suas palavras saíram num suspiro depois de muito esforço.
- Não dia isso, querida. Eu cheguei, eu estou aqui com você. Mesmo sendo um monstro, ainda te amo do fundo da minha alma – disse James começando a ficar preocupado.
- Ele... me deu forças para continuar viva... mas o que ele me deu foi tomado dele... Eu sinto muito... se eu fosse mais forte... viveríamos os três juntos para sempre... - Anne parecia cada vez mais fraca.
- Nós três? Não estou entendendo, querida. Não fale mais, você está exausta... - o único olho de James começava a se encher de água como se já pressentisse o que estava por vir.
- Eu... te... amo. Disse Anne por fim. Seu corpo se congelou numa pintura que perduraria décadas sem perder o fascínio que nos passava.
James não disse nada, não se mexeu, fechou-se em si. Thomas só podia ficar parado assistindo a tudo ainda segurando a criança que nascera morta enrolada em mantos. A noite lá fora parecia perturbada, com ventos que uivavam pela porta ainda aberta e as copas das árvores balançando inconsoláveis de um lado para o outro. Thomas permaneceu imóvel olhando para a figura que uma vez foi o belo e alegra rapaz que atropelara.
James voltou a si, abriu os olhos mas continuava com o olhar profundo de quem está solucionando algum problema ou tentando entender algo que foi dito.
- Então era isso. Eu teria um filho, você seria mãe. Mas eu matei um filho, eu matei uma mãe. É culpa minha, o preço foi cobrado agora. Me perdoe, querida. Eu sou um monstro mesmo no fim das contas. Por minha culpa, vocês foram colocados no outro prato para equilibrar a balança. James falava como se o problema fora solucionado enfim.
“A culpa é toda minha, vocês não mereciam pagar pela minha dívida.” Disse James antes de começar a chorar, um choro de pesar que fez Thomas lembrar da esposa que acabara de falecer. James olhou para o embrulho que Thomas tinha nos braços. “Me perdoe, meu filho.” Foi a última coisa que disse.
James lentamente pôs a mão no bolso do casaco, sentiu a frieza familiar da tesoura, sua textura lisa, seu peso... seu peso. O peso para trazer o equilíbrio.
- Me perdoem. Mais uma vez, a balança precisa de um contrapeso para manter o equilíbrio. Estou em dívida com vocês... - Então James retirou a tesoura do bolso, aconchegou seus dedos para ficarem firmes e seguros. Thomas entrou em pânico ao ver a tesoura com manchas vermelhas por sua superfície, só então reparou que James estava com as mãos e o rosto sujos de sangue, seu corpo tremeu instintivamente.
- Senhor, não faça isso, solte essa tesoura! Thomas gaguejou para James.
Mas James pareceu não ouvir mais nada a sua volta. Seus movimentos era lentos mas precisos, levantou a cabeça, olhando através do telhado, parecia ver Anne e seu filho assistindo a tudo acima das nuvens. Dirigiu a ponda da tesoura à sua garganta. Thomas permanecia paralisado assistindo àquilo.
Através do vento que urrava porta adentro, pôde-se ouvir cascos de cavalos pelo caminho que trazia à casa de James e Anne, “o casal Winter Hill”. Ouviu-se de fora vir o grito do senhor Winnfild e do Dr. Gibson. James permanecia na posição, não escutava mais nada, fechou os olhos.
Quando o som dos passos apressados no assoalho da casa ecoaram pela sala, James continuou o trajeto da tesoura, os homens entraram apressados na sala. Ouviu-se apenas o som de um corpo caindo no chão.


Música para ouvir: The Kiss – The Last of the Mohicans Theme (sugestão da namorada ^^)
Isso é tudo, pessoal! hauhauuha